A arte diz tanto sobre o seu
tempo...
Assim como em diversas outras
manifestações artísticas, o mesmo ocorre com a música, que fala muito sobre o
local e o tempo em que é feita. O livro UMA HISTÓRIA DO SAMBA: as origens, de Lira
Neto, é “um prato cheio” nesse sentido. Conta não somente a trajetória que abrange um
período do ritmo símbolo do Brasil, mas diz também sobre como viviam os afro descendentes que habitaram
o Rio de Janeiro, logo após a abolição da escravatura.
O livro foi escrito a partir de
uma robusta pesquisa em arquivos variados, notadamente em jornais, rádios e gravadoras.
Esse é o primeiro volume (e o único já
publicado), de uma trilogia, em que o autor pretende fazer um relato da
história do samba, a partir do final do século XIX e até os dias atuais. Nesse
volume de estreia, além da descrição elegante, e da prosa esmerada, constam as letras
de alguns sambinhas históricos como Pelo Telefone, Batuque na Cozinha e Jura,
entre outros. Um bom acervo de fotos enriquece, ainda mais, esse livro
indispensável aos amantes do ritmo que representa tão bem nosso país.
O mais genuíno dos gêneros musicais brasileiros guarda em suas origens uma mistura de ritmos e tradições que atravessam a história. Evoluiu a partir da incorporação de batuques praticados por africanos que vieram como escravos para o Brasil e seus descendentes. Consolidou-se com a inclusão de movimentos típicos de rituais religiosos que se utilizavam de música e dança e continham também lutas, como a capoeira, por exemplo. Nesses eventos os negros expunham seu gingado e malemolência, exibindo ágeis movimentos de corpo, ao som de ritmos de batidas fortes, frequentemente inebriados por doses da cachaça brasileira. A esses batuques incorporaram-se elementos de outros ritmos musicais como a polca e o calango, suscitando o surgimento da cadência do inigualável samba brasileiro.
O samba, como disse lindamente
João do Vale “é a voz do povo”. Tão forte na cultura nacional, que praticamente todos os grandes compositores do
país, passeiam por ele em algum momento de suas carreiras.
Embora o samba não constitua a
maior parte do que produz, Chico Buarque, esse grande talento da música brasileira, quando se lança
nesse ritmo costuma apresentar composições magistrais. Em seu álbum lançado no
ano passado, como vem fazendo repetidamente ao longo de sua rica trajetória,
oferece oportunidades de se pensar o país, com a maestria de sempre. Nele fala da perversa condição social de grande parte do país e conta o que acontece
“quando pinta em Copacabana” a caravana dos
indesejados, vindos das favelas, da periferia do Rio de Janeiro.
“Com negros torsos nus deixam em
polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que
apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela...”
Por essas e por outras, o tão bem
nascido compositor, originário de uma família de intelectuais respeitados, acaba
sendo detestado e caluniado pela direita e pelos conservadores de plantão. Por
décadas, Chico vem renovando-se ano após
ano. Em as Caravanas, essa precioso samba com uma pegadinha de funk, o músico,
arrojado como sempre, abre-se mais uma vez para o novo. Ao contrário dos
ranzinzas de plantão, enriquece e atualiza seu repertório sempre coerente com
seu tempo, ao incluir a participação de um jovem funkeiro na música que dá
título ao álbum.
O samba em uma de suas mais conhecidas manifestações, os desfiles das Escolas de Samba, especialmente os do Rio de janeiro, vem fazendo críticas sociais e oferecendo pontos de reflexão de enorme riqueza, como o que ocorreu neste ano com a Unidos do Tuiuti. Ninguém fala melhor sobre o Brasil e nossas mazelas, do que o samba. O sofrimento do povo encontra nele, frequentemente, seu mais vigoroso eco. Como se expressou Caetano Veloso: "o samba é filho da dor".
Falar de leitura e de samba é
assim. Algo que não tem fim. Como registrou Paulinho da Viola, outro dos grandes na categoria gente boa de samba : “tanta coisa
que eu tinha a dizer, Mas eu sumi na poeira das ruas...”
Ref.: UMA HISTÓRIA DO SAMBA: as origens. Lira Neto. São Paulo:
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