quarta-feira, 18 de março de 2015

HISTÓRIAS DA QUARESMA

“Todas as encruzilhadas – mas somente à meia noite; todos os caminhos na quaresma – com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, ....” (Guimarães Rosa em:  Sagarana, P. 202)

Se você não é pessoa corajosa o bastante, melhor não andar por Minas no período da Quaresma. Nessa época, por aqui, correm soltos e costumam aparecer para os desavisados, entes esquisitos, como fantasmas, espectros e assombrações. Há lugar  para tudo e mais alguma coisa que a imaginação popular cria, reconta e preserva de geração em geração.
Em minha bucólica infância rural, ninguém precisava dizer às crianças que tempo era. A chegada da Quaresma anunciava-se pelo florescer das árvores roxas que salpicavam a mata, pontuando de tristeza a capoeira verde e de receio o coração medroso da meninada. Era a época em que os santos ficavam cobertos com panos roxos, nas igrejas e nas casas. Lá fora o perigo rondava, especialmente à noite: a mula sem cabeça andava desembestada, aparecendo para qualquer um, e o  lobisomem surgia com mais frequência e não apenas nas encruzilhadas, ou  nas noites de lua cheia, como no resto do ano.
Era o tempo de recolher mais cedo. Quem estivesse nas estradas e não quisesse ser surpreendido, cuidava de apressar a marcha,  assim que entardecia. 
Foto: Rosilene Salomé (Em Sítio Sonho Meu)

Foto: Rosilene Salomé

Nas velhas fazendas abandonadas, quase sempre mal assombradas, ocorriam diversas aparições, desde o fantasma da menina morta de tanto apanhar do padrasto, até a moça de branco com algodão no nariz a rogar que lhe tirassem o incômodo que a impedia de respirar. Essa era a que dava mais medo, porque diziam  que caso alguém a encontrasse deveria atender o seu pedido. E quem ia ter coragem, estando provavelmente com as pernas bambas, as mãos trêmulas e as calças mijadas?
Em praticamente todas as regiões de Minas, nesse período, ainda hoje, ouvem-se relatos incríveis de fantasmas e assombrações. São portas que batem mesmo na total ausência de vento, móveis que rangem e se arrastam sem o toque de ninguém.
Na tentativa de acalmar essas horripilantes criaturas, à noite vinham os homens para encomendar as almas. Chegavam na surdina e se apossavam do terreiro. Ao som das matracas, apenas sussurravam uma  cantiga triste. Dentro da casa, silêncio absoluto – era a ordem dos mais velhos e ninguém desobedecia. Às vezes o estalar da madeira do assoalho, ou barulhos inexplicáveis vindos do forro de taquara, aumentavam ainda mais o pavor das crianças, cuja único consolo era embolar-se na cama dos pais. 
Na cidade, o perigo não era menor. Pontualmente à meia noite, a égua de três patas passava mancando  pelo calçamento irregular da rua Direita. O cavaleiro, ninguém sabia quem era. Uns diziam que o animal, embora arreado, andava sem condutor. Quando ousávamos espiar pela fresta da janela,  víamos as faíscas de fogo brotadas do bater das ferraduras nas pedras do calçamento irregular. As ruas mal iluminadas e a rapidez com que o bicho passava nunca permitiram que identificássemos a figura que o montava, em sua indumentária preta: - Uma batina, ou uma capa?
Além dessas, muitas outras histórias povoam o imaginário popular de nossa Minas Gerais. É comum que em regiões diferentes, elas assumam contornos variados. Aqui onde vivo, a Mula Sem Cabeça é o fantasma de uma moça linda e prendada que se apaixonou pelo padre. Já o Lobisomem é, pelo menos nas histórias que eu ouvia,   o espectro de um filho cruel que batia na própria mãe.
Se você está achando que esses casos são apenas crendices e superstições,  digo-lhe com a autoridade de quem viveu a infância na roça:
- Que mané superstição, que nada! Isso é a mais pura verdade! E não lhes contei nem a metade.
Como bem disse Guimarães Rosa: “Graças a Deus, tudo é mistério” *
E...Essa história entrou por uma porta e saiu por outra. Quem quiser que conte outra.


*Guimarães Rosa, In: Carta de Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana. Prefácio. São Paulo: Ed. Record, 1984.




5 comentários:

  1. Que delícia lembrar essas histórias! Muito Minas Gerais!

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  2. Adorei, Maria Inês!!! Viajei mundos e fundos pra acompanhar, arrepiada, cada passo dessa história, que é a nossa história!
    E ai vai mais uma, vivida pelo meu pai, seu tio Chiquito, que, a cada quaresma, fazia questão de repetir essa história. Assim ele contava:
    _ Ia eu no meu cavalo baio, alta madrugada, quando, de longe, numa noite de lua quase cheia,
    quando acabei de virar uma curva, que dava para um brejão cheio de “Maria sem vergonha”, que avistei, de longe a dita porteira. Ah! mas antes de chegar mais perto, veio aproximando um cavaleiro, ainda miudinho, não sei se pela distância ou pelo medo. Arrepiei todo, mas como o cavalo nada sentiu, continuei... O batido dos cavalos, do meu batendo mais ligeiro e fazendo mais barulho, e do dele, chegando surdo nos meus ouvidos, anunciavam o que podia vir. Foi dito e feito. Mal o camarada chegou mais perto de mim, gritou esprimidinho: “vorta cumpanheiro, purque da porteira ocê num passa não!!!” Meu cavalo deu um tranco. Meu coração disparou. Era quaresma! Esperei ele chegar mais perto e pude ver e mais que isso, sentir, que ele se borrou todo! Falei pra mim mesmo: diabos! Mais essa... Pelo que pude entender da fala dele, havia na porteira um bicho muito doido que agarrou os cabelos dele antes de abrir a porteira... Na disparada, seu cavalo achou o caminho de volta. Ele se foi e eu voltei a pensar: diabos... tenho que chegar em casa e não tem outro caminho. Se pedir pousada por aqui, amanhã, quando chegar em casa, não vão acreditar na minha história... e a coisa não vai ficar boa pra mim. Tenho que ir. Esporei o cavalo e saí num galope só. E foi ficando perto da porteira.... e mais perto... O arrepio subiu dos pés pra cabeça... o chapéu tremeu...Agarrei na porteira , chegando o cavalo de lado, no freio e na espora. Não sei o que gritava mais alto, o relincho do cavalo ou a batida do meu coração... De repente, quando a porteira abriu e fui passando senti que fiquei sem meu chapéu... Ave Maria! Senhor bom Jesus! Era o bicho! Não tinha como duvidar! Foi quando, olhando pro céu para pedir ajuda ,vi meu chapéu agarrado num cipó seco pendurado na árvore que beirava o caminho! Que alívio!!! Assombração que nada! Pura superstição!!! Mas o melhor foi no outro dia; não contei nada pra ninguém, até que começaram surgir os boatos da assombração da porteira.

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  3. Assistam!

    https://www.youtube.com/watch?v=gL9LH5bjJMA&list=PLF041677482DF00AB

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  4. Não consigo nem imaginar como eram esses medos! Deviam ser mesmo paralisantes!

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