quarta-feira, 15 de março de 2023

Mãe Solteira


 No ano de 2021 a Secretaria de Cultura do município de Viçosa lançou um convite aos escritores aqui residentes para que contassem, por meio de contos, crônicas, ou poemas, as suas memórias afetivas com a cidade. Atendendo ao chamado, escrevi o conto Mãe Solteira, uma ficção criada a partir de muitas histórias vividas neste lugar que tanto aprecio. O livro já foi publicado, porém cada autor obteve apenas 10 exemplares, o que impediu que pudéssemos compartilhar com mais pessoas. Assim sendo, publico aqui, com alegria porque, mesmo tratando-se de ficção, foi muito inspirado em minhas vivências no trabalho. Com essa história faço um tributo a todas as mulheres guerreiras que, como eu, trabalham e criam seus filhos em um pais machista como o nosso.

O livrinho publicado em 2022
onde consta o meu conto

Mãe Solteira

Aos outros parece uma fotografia muito antiga... Nela, carrego a bandeira do município no desfile do cinquentenário da cidade. Acho estranho que não me reconheçam. Para mim foi ontem.

O que sinto e não consigo dizer será sempre muito maior do que essas palavras que me deixam nua. Confissões costumam ser dolorosas. Nunca disse, nem para o padre, mas resolvi declarar agora, não sem muito desconforto, que cometi um crime.

Meu filho está por fazer 50 anos. Parece que foi ontem que meu menino nasceu, menos de seis meses depois dessa fotografia. Eu ingressara no ensino médio no colégio estadual fundado naquele ano na cidade e, como a  primeira da classe, fora convidada a carregar a bandeira no desfile comemorativo. Morava em uma das vilas dos operários da Escola, onde meu pai era trabalhador havia seis anos.  Não dá para esquecer que ele carregou muito peso para construir, quase sempre mal agasalhado, mal nutrido e de pés descalços, os edifícios nos quais meu filho e eu pudemos estudar.  Veio da comunidade rural  Palmeira Pequenina, onde era lavrador e puxava enxada desde que se entendia por gente. Mesmo que como servente fizesse massa, carregasse pesos e empurrasse carrinhos de brita na construção da Escola, tinha a oportunidade de  dar  estudo às filhas, desejo intenso  do  sonhador incansável e otimista que era.

Sua mulher, miúda e franzina, além de dona de casa e mãe de três filhas,  cuidava da horta e das galinhas. Aqui fez o curso de corte e costura: quem via a  família tão limpa e arrumadinha não conseguiria imaginar o empenho e a obstinação daquela mulher  que, em certa época, trabalhou também como lavadeira de roupas de estudantes. Eram os tempos nos quais a Escola atrasava o pagamento e, não fosse por minha mãe, teríamos passado privações, maiores até do que aquelas das quais fugíamos. Na roça, chegava a comida a ser pouca e agasalhos eram quase um luxo.  

No centenário da cidade, houve muitas festas, mas, para a mocinha dessa foto, nenhuma delas foi tão marcante quanto a Semana do Fazendeiro. Era mais um dos corriqueiros encontros entre uma “nativa” e um aluno da Escola. Foram momentos intensos e cheios da ternura típica de jovens enamorados românticos e bem intencionados. Estudante do terceiro ano de Agronomia, ele era  do sul de Minas, onde o pai, um sitiante recém iniciado na cultura do café, decidiu enviar o filho para estudar na famosa Escola de Ciências Agrárias da Zona da Mata mineira, mesmo com certa indisposição da esposa, mulher de origem mais abastada, que desejava ver o filho médico ou juiz.

Minha avó paterna vinha passar tempos conosco de vez em quando. Foi com ela que tomei gosto por contar histórias, interessei-me particularmente pela lendas, como a da cobra grande e a do bicho folhaça. Eram relatos de povo Puri e, provavelmente, também de alguma ancestralidade africana. Na vila, sempre que vinha,  benzia-nos, os familiares, e os que a procuravam. “Que cozo? Carne torcida, nervo moído, osso esconjuntado”, repetia enquanto atravessava a agulha  no novelo de retalhos usado para mandar às fiandeiras que teciam os cobertores da família. Acompanhando-a ainda menina, cortei esse campus da Escola à procura de plantas para chás, unguentos e outras práticas. Subi inúmeras vezes o Alto dos Barbados, onde víamos quase sempre na encruzilhada trabalhos de umbanda: as velas vermelhas, o litro reluzente de cachaça e o agdá de barro com a farofa. Em sua companhia, fui algumas vezes a pé, fazendo um trajeto de duas léguas até a roça onde vivia com seu outro filho que se recusava a mudar para a cidade. Talvez por isso eles dois tenham sido os mais longevos da família. Diferentemente do meu pai, que mal passou dos 60 e se foi com menos anos  do que  tenho hoje. Era um velho com pouca idade. Tinha o corpo estragado por uma vida inteira de friagem nos pés e fumaça de cigarros nos pulmões. Ele os tragava desse os 14 e se recusava a deixá-los por mais que fosse alertado sobre o risco. “A gente tem que ter algum aliviozinho, minha filha,”  dizia. A vida  dura não o fez triste. Nunca abriu mão de suas pequenas alegrias.  Adorava um forró e, nos pequenos espaços que o excesso de trabalho lhe permitia, juntava-se a amigos nas rodas de capoeira. Depois que, por questões de saúde, deixou o trabalho nas obras e foi enquadrado como auxiliar operacional agropecuário, até aos domingos, ia prender os bezerros e alimentar os outros animais do estábulo, onde foi lotado nos últimos anos de labor, quando já não aguentava mais carregar sacos de cimento nas costas ou empurrar carrinhos de brita.

Depois que ele se foi e, em seguida, também minha irmã caçula, com pouco mais de 50, ficamos somente minha mãe e eu,  porque vimos a do meio morrer com apenas 16 anos, vítima de um aborto clandestino. O sofrimento e a dor de toda a família ficaram eternizados. Foi também o medo que permitiu que meu filho nascesse apenas dois anos depois desse marcante episódio.  Minha mãe, após a morte do meu pai, viveu comigo até oito anos atrás, quando adquiri essa condição dolorida da orfandade plena.

Meu filho, que do pai tem apenas o nome na certidão de nascimento, mudou-se daqui quando tinha 25 anos; foi portando  títulos de graduação em Engenharia de Alimentos e de mestrado na mesma área. Ingressou em uma multinacional e vive infeliz no seu mundo de concreto e conforto. Paga alto o preço por receber salário em moeda europeia e  ter seus filhos estudando em escolas bilíngues.  Fiz de tudo para que ele sofresse o mínimo possível com a condição de filho de mãe solteira; me desdobrei o quanto pude, para que, diferentemente de mim, não lhe faltassem bons agasalhos, muito menos o pão com manteiga no café da manhã de todos os dias. 

O menino foi fruto de uma história bonita e muito curta, iniciada na Semana do Fazendeiro no ano do desfile em que apareço na foto. Posso estar repetindo algumas partes desse relato e fugindo ao que me estimulou a iniciá-lo: o crime que cometi, no ano em que ele nasceu e que considero o mais decisivo da minha vida.

Quando fiz 16 anos, meu pai me matriculou no curso de datilografia. Seis meses depois,  tornei-me uma das poucas alunas que davam 180 toques por minuto e a própria professora indicou-me para ajudante no cartório de registro civil. Era na informalidade, sem direitos trabalhistas, mas o salarinho pingava regularmente todo fim de mês. Além de me tornar autônoma, foi providencial a ajuda que passei a dar em casa. Durou pouco mais de um ano e meio, até que me ingressei na Escola, em cujo processo seletivo os 180 toques foram o diferencial. Eram os 70 do século passado e a Escola crescia; passei no vestibular e iniciei o curso superior. Foi um ano de muitas mudanças. Não fora a vida pelejada desde a infância, provavelmente,  eu não daria conta de trabalhar e estudar com um bebê recém-nascido.  Eu tinha 18 anos e não havia tempo para pensar na fraude que cometera.

Durante 40 anos, até me aposentar, há menos de uma década, trabalhei na Escola. Quando terminei a graduação, deixei de ser datilógrafa; passei a cuidar da assistência social, tarefa para a qual não tinha formação plena, apenas uma ligeira aproximação com o curso que fiz. Mesmo que muitas vezes tenha sido chamada ironicamente de “pica-couve”, creio que meu desempenho orgulhou meu pai e minha mãe. Ali entendi que essa que dizem ser uma das mais bonitas e eficazes instituições de ensino do país foi feita, mais com o esforço e sacrifício de pessoas como as da minha família, do que com o conhecimento e a tecnologia  vindos de Purdue.

Agora somos poucos: meu filho que mora fora e a gente dele e, aqui, duas sobrinhas, meninas da minha amada irmã mais nova. Quando meu filho nasceu ela, uma mocinha de 14 anos, assumiu os cuidados com o bebê, para que eu e minha mãe pudéssemos continuar trabalhando fora de casa.  Casou-se mais tarde e teve as filhas depois dos 30. Morreu precocemente aos 50, deixando as  meninas. Apesar de casada, criou-as sozinha, por motivos que aqui não precisam ser explicados; são tão comuns a tantas mulheres, que podem ser facilmente deduzidos.

Lembro ao meu filho que a vida que leva hoje foi possibilitada com os penares de seus avós e de sua mãe, permitam-me dizer. Não foram poucos perrengues. Jamais mencionei os assédios dos quais fui vítimas no trabalho e na vida, ou falei das injustiças frequentes. Perdi a conta dos  documentos, relatórios e projetos que elaborei e redigi para que meus chefes homens assinassem; entendiam como minha obrigação, enquanto mulher, sedimentar caminhos e concretizar maneiras de alcançarem cargos mais altos,  posições raramente  ocupadas por nós. Se for tomar ao pé da letra, como hoje muitos episódios das relações de trabalho são entendidos, posso reafirmar que, não raras vezes, sofri assédio moral e sexual no trabalho. Carregando o rótulo de mãe-solteira, tais situações eram vista quase com naturalidade.

Minha neta mais velha reclama comigo da  incipiente presença do pai, divorciado da primeira família. Relata dúvidas tão comuns nessa delicada fase dos 20 anos; dúvidas que não pude sentir quando eu tinha a idade dela. Insegura  quanto às escolhas profissionais,  deixou a universidade, depois de dois anos em um curso que escolheu pressionada pela família. Gosto de saber que posso dar a ela conselhos e opiniões que não recebi. Diferentemente do que desejam os outros avós e a mãe, que queriam mandá-la viver fora do país, ela cogita vir estudar aqui. Penso que pode lhe fazer bem distanciar da vida numa cidade tão grande, condição que me apavora bastante. Caso venha, vou lhe contar muitas histórias, inclusive a da minha fraude. Gostaria  que me acompanhasse nas caminhadas por esse campus tão bonito e que fosse comigo à procissão de Santa Rita. Seria ótimo levá-la para dançar forró, na Semana do Fazendeiro.   

Sou uma mulher de sorte, não somente porque jamais fui denunciada pelo meu crime. Vivo em uma bom lugar e tive muitas oportunidades de aprender. Fui criada dentro de uma Escola que é quase um jardim.  Ainda assim, às vezes fico sorumbática e mal humorada.  Não  creio  que isso tenha relação com o ilícito que cometi na juventude. Com a idade, os receios mudam. Mantenho, porém, um esforço constante para que permaneça em mim, a crença de que gente é bicho que presta! 

Não sei porque o pai do menino  jamais voltou para o nosso casamento, como havíamos combinado e isso não mais importa. Agora  ele encontrou-me na internet e quer me rever, diz que está viúvo e tem dois filho. Quantos?  Será que  conta com o meu?  Não sei se devo falar que o nome dele está na certidão de nascimento do menino, onde consta como declarante: o próprio pai. Há quase cinquenta anos, ele foi de férias. Sabendo que eu carregava um filho  no ventre, nunca mais voltou nem deu notícias. Nem sei se compensa contar  meu crime. Tenho uma enorme preguiça dessa história. Ele vai se lembrar que eu trabalhava no cartório de registro civil?  Minha angústia de hoje, não é mais pensar  nessas miudezas, o que mais incomoda é esse não saber constante.