domingo, 30 de abril de 2023

CRÕNICAS DO DIA A DIA - Travessias, Caminhos, Buscas, Caminhadas

É preciso aprender desde cedo a reconhecer que para seguir a nossa particular jornada, há que se empreender as próprias buscas,  fortalecendo as pernas e aguçando o olhar. E que ouvir o silêncio à procura de si mesma, perdendo-se e se reencontrando   a fim de trilhar  o seu inevitável caminho,  seguindo seu coração, sua vontade mais genuína  e sua intuição, constitui o único meio de seguir menos desfalcada.

Caminhantes e jardineiras encontram pedras e canteiros pelas trilhas. Na travessia há dor e também a inestimável presença da beleza, para aqueles que seguem com atenção e olhos abertos. 

Parafraseando Nietzsche, Criar [e andar] são a grande emancipação da dor e alívio da vida,  pois "a voz da beleza fala baixo e só se insinua nas almas mais despertas e em  nossas horas mais silenciosas..." Costuma ocorrer que nesses instantes aconteçam os fatos mais importantes  e que não são poucos os momentos em que é preciso  "procurar o ar livre e sair de  compartimentos empoeirados".

Percebe-se que, à semelhança da vida, a maioria das estradas é sinuosa  e, ao atravessá-las somos levados a perceber que muito do que se pode fazer de graça, na maior parte das vezes possui mais valor do que aquilo que tem preço.  E que "... o pouco é o característico da melhor felicidade".

Pelas trilhas sigo caminhando e ruminando, pois "... de que serviria o homem alcançar o mundo inteiro, se não aprendesse a ruminar?". Assim compreendo que  pode ser que eu esteja, não mais do que uma louca, mas tanto quanto uma poeta, desviada de grandes verdades, porém coerente com as minhas emoções e sentimentos mais genuínos. E, que posso, nessas horinhas de fuga, abraçar árvores, bendizer os raios de sol e conversar com borboletas e passarinhos  ficando nua das convenções que tentam impor-me em grande parte do dia.  

Canteiros de cogumelos pelas trilhas

Aqueles pedaços do caminho em que me deparo com travessias perigosas e doloridas constituem os momentos em que mais preciso admitir que "Algum veneno uma vez por outra é coisa que  proporciona agradáveis sonhos." E que sem esses, o trilhar torna-se quase impossível, tantos são os percalços e obstáculos.

Para se fortalecer as pernas é preciso que, a cada dia seja feita uma nova caminhada e que, seguir atenta, encantada e confiante no que há de sagrado na natureza, pode atenuar o peso dos ombros e as angústias das perdas inevitáveis.

E outros maiores porem tão bonitos quantos os miúdos

Texto construído com buscas  em Assim falou Zaratrustra, de Friedrich Nietzsche, filósofo e músico.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Conto - NEGÓCIOS

Negócios

Minha avó tinha morrido; minha mãe caiu no mundo. De pai não sei. Meu avô me vendeu. Por pouca coisa, suponho. Eu só servia para dar despesas. Era o que ele dizia. Fui levada mocinha, quase uma menina. O homem rico, dono das lojas, falou que eu ia ser esposa. Era sujeito de bem. Sei. Na real me tornei empregada durante o dia. À noite, também cumpria o que me mandava. Esperta sou, eu acho. Nunca duvidei que isso também estava no trato com meu avô.  Somente poderia sobreviver se fosse boazinha, assim entendi. Comecei pedindo:

- Posso ver televisão?

Fui assistindo, fui aprendendo: como fala, como faz, como se transforma.

O homem tem um filho da mãe que foi a esposa, a dona da riqueza original. Dizem. E que fugiu com um estrangeiro. Menino mimado ficou. Fui vendo. Deu de se drogar ainda muito moço. Falavam. Tem carro de luxo, negócios. Loja no seu nome.

Eu no trabalho. Obedecendo e observando. O filho esbanja dinheiro, faz racha com carro. Esnoba. Em pouco tempo ocorre um acidente fatal. O pai cai em desgraça. Só tem a mim, ele diz. Quer ganhar minha confiança e talvez algum afeto, penso. Quem não precisa?

Cartas de cobrança e contas começam a chegar. Tudo negócios mal feitos do filho. Era o que diziam.

O pai primeiro pagou, ... foi pagando. Perdeu loja, caminhão. Vai ficar sem nada: falavam. O homem foi entristecendo, foi-se amuando. Ficou entregue. Pediu meus documentos. Me levou ao cartório. Pôs casa no meu nome.  Recebi escrituras de terrenos. Posse de veículos. Me falou do cofre. Mostrou o segredo. Muito dinheiro. Até em moeda estrangeira.

Derrame bateu no homem. AVC. Tratamentos: hospital, aparelhos, médicos, fisioterapia. Pouco resultado.

Sou acompanhante, enfermeira. Me torno senhora. Aprendo mais, pesquiso muito. Anoto quando preciso. Agora tem a internet que ajuda muito. O homem mal fala. Vive na cama, ou prostrado na cadeira. Contrato doméstica, cuidador. Levam pra sala. Levam pro sol. Escuto, compreendo: os negócios dando água. Empregados indo à justiça. Vem o banco. Vêm os fornecedores. Falam em penhora, confisco de bens.

Contrato advogado, mostro posse do que é meu, documentos. O cofre não menciono.

O homem não sai mais da cama. Pegou pneumonia. Contrato um fisioterapeuta, para tratamento domiciliar. Tudo decido.  Somente eu tenho o segredo do cofre.

O doente não reage, saúde piorando a cada momento.

Fisioterapeuta é moço bonito. Tem que vir todo dia. Profissional dedicado, muito gentil.

Eu o chamo de senhor. Ele diz:

- Não precisa. Temos a mesma idade.

Em sua resposta e em seu olhar, mais do que simpatia. Aprecio. Sorrio. Trinta anos eu tenho e sou quase uma criança. Ensaio um passo de dança.

Arte em grafite, fotografada em um muro no 
Rio de Janeiro