segunda-feira, 3 de abril de 2023

Conto - NEGÓCIOS

Negócios

Minha avó tinha morrido; minha mãe caiu no mundo. De pai não sei. Meu avô me vendeu. Por pouca coisa, suponho. Eu só servia para dar despesas. Era o que ele dizia. Fui levada mocinha, quase uma menina. O homem rico, dono das lojas, falou que eu ia ser esposa. Era sujeito de bem. Sei. Na real me tornei empregada durante o dia. À noite, também cumpria o que me mandava. Esperta sou, eu acho. Nunca duvidei que isso também estava no trato com meu avô.  Somente poderia sobreviver se fosse boazinha, assim entendi. Comecei pedindo:

- Posso ver televisão?

Fui assistindo, fui aprendendo: como fala, como faz, como se transforma.

O homem tem um filho da mãe que foi a esposa, a dona da riqueza original. Dizem. E que fugiu com um estrangeiro. Menino mimado ficou. Fui vendo. Deu de se drogar ainda muito moço. Falavam. Tem carro de luxo, negócios. Loja no seu nome.

Eu no trabalho. Obedecendo e observando. O filho esbanja dinheiro, faz racha com carro. Esnoba. Em pouco tempo ocorre um acidente fatal. O pai cai em desgraça. Só tem a mim, ele diz. Quer ganhar minha confiança e talvez algum afeto, penso. Quem não precisa?

Cartas de cobrança e contas começam a chegar. Tudo negócios mal feitos do filho. Era o que diziam.

O pai primeiro pagou, ... foi pagando. Perdeu loja, caminhão. Vai ficar sem nada: falavam. O homem foi entristecendo, foi-se amuando. Ficou entregue. Pediu meus documentos. Me levou ao cartório. Pôs casa no meu nome.  Recebi escrituras de terrenos. Posse de veículos. Me falou do cofre. Mostrou o segredo. Muito dinheiro. Até em moeda estrangeira.

Derrame bateu no homem. AVC. Tratamentos: hospital, aparelhos, médicos, fisioterapia. Pouco resultado.

Sou acompanhante, enfermeira. Me torno senhora. Aprendo mais, pesquiso muito. Anoto quando preciso. Agora tem a internet que ajuda muito. O homem mal fala. Vive na cama, ou prostrado na cadeira. Contrato doméstica, cuidador. Levam pra sala. Levam pro sol. Escuto, compreendo: os negócios dando água. Empregados indo à justiça. Vem o banco. Vêm os fornecedores. Falam em penhora, confisco de bens.

Contrato advogado, mostro posse do que é meu, documentos. O cofre não menciono.

O homem não sai mais da cama. Pegou pneumonia. Contrato um fisioterapeuta, para tratamento domiciliar. Tudo decido.  Somente eu tenho o segredo do cofre.

O doente não reage, saúde piorando a cada momento.

Fisioterapeuta é moço bonito. Tem que vir todo dia. Profissional dedicado, muito gentil.

Eu o chamo de senhor. Ele diz:

- Não precisa. Temos a mesma idade.

Em sua resposta e em seu olhar, mais do que simpatia. Aprecio. Sorrio. Trinta anos eu tenho e sou quase uma criança. Ensaio um passo de dança.

Arte em grafite, fotografada em um muro no 
Rio de Janeiro


Um comentário:

  1. Como viajo com seus contos, Maria Ines do Carmo.
    Parece vida real, se bem que para muitas pessoas é real mesmo, infelizmente.
    O bom que ela se livrou do velho.

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