domingo, 27 de novembro de 2022

O mundo fica mais pobre quando um jardineiro morre

 

Já mencionei por aqui que sou de uma família de gente que não vive sem plantas. Meu pai tinha origens indígenas e possuía um enorme acervo de conhecimentos práticos sobre o universo vegetal. No meio da mata, nas roças e nas estradas, ia nos dizendo o nome das árvores, dos capins, das ervas e nos contando sobre as características e propriedades de cada uma delas.

­ - A cutieira, essa árvores enorme que vocês estão vendo produz nozes bem saborosas, mas não pode comer muitas, senão a “caganeira” é certa. Estão vendo esse recorte em sua casca? Alguém passou por aqui e tirou a medida exata do pé da criança para quem vai ser feita uma simpatia, em intenção de sua cura.

Minha mãe, por sua vez, além da paixão pelas plantas ornamentais nunca deixou de cultivar a horta, onde, além de verduras e legumes, possuía uma boa variedade de folhas de chá. Cuidava do pomar com esmero e vivia atenta ao menor sinal do ataque de formigas ou erva de passarinho; tinha um enorme prazer de distribuir com amigos e parentes mangas, jabuticabas, acerolas, laranjas, goiabas, condes e bananas, entre outras frutas que possuía no quintal. Os pés de caqui eram seu xodó.

Não houve surpresa quando a caçula dos oito filhos anunciou que queria estudar agronomia. Assim ela fez e no meio do curso, na Universidade Federal de Viçosa, já havia escolhido o paisagismo, o que a levou a buscar uma especialização na Universidade Federal de Lavras.

Dedicou a sua curta vida profissional a essa área, ora como agrônoma responsável pelo setor de parques e jardins de uma instituição local, ora como profissional autônoma responsável por projetar e executar projetos paisagísticos. Com uma pequena equipe, também cuidava da manutenção de jardins.

Muito do que sabemos sobre jardins aprendemos com ela. Lembro-me da primeira vez em que fazendo um curso de atualização, ela chegou entusiasmada nos contando sobre o processo de reprodução de plantas pelo método da alporquia.  Foi vibrante acompanhar suas experiências nessa e em muitas outras descobertas que realizava cotidianamente.

Adepta a um estilo bem tropical de paisagismo, discípula de Burle Marx, em seus jardins orquídeas, bromélias, palmeiras, helicônias, alpineas e estrelitzias eram as vedetes. Criteriosa e quase perfeccionista, excedia nos cuidados e cumpria com rigor cada etapa do seu trabalho. A implantação de um gramado, por exemplo, era precedida de um levantamento rigoroso da topografia do terreno, do mapeamento das redes elétricas e hidráulicas subterrâneas, não permitindo jamais que um jardineiro a seu serviço estourasse um cano d’ água ou danificasse uma fiação elétrica.

Espécies tropicais eram as suas preferidas

Ela Planejou o meu jardim e, juntamente com minha irmã e auxiliares, executou o serviço, ouvindo os meus pitacos e sempre respeitando minhas preferências. Mais de 20 anos depois, o espaço continua cada vez mais lindo e com a maior parte das espécies originalmente implantadas, ainda em pleno vigor.


Meu jardim concebido por Angélica



Uma profusão de bromélias


Diagnosticada como portadora de encefalite de Rasmussem, uma doença inflamatória progressiva que acomete o córtex cerebral e cuja etiologia ainda não se encontra plenamente elucidada, podendo ser decorrentes de fatores autoimunes, lutou bravamente pela vida por mais de 30 anos. Com as perdas progressivas acentuadas nos últimos cinco anos, a parte da sua memória mais preservada consistia nas relações familiares e em seus conhecimentos de paisagista. Se visse algum de nós descuidar de um vaso ou podar inadequadamente uma planta, dizia: não é assim ou, tá errado.

Durante a pandemia da Covid-19, sufocadas pelo isolamento e inspiradas pelas mulheres do vale do Jequitinhonha, resolvemos entre as irmãs cunhadas e sobrinhas criar um grupo no WhatsApp para fazermos cantigas umas para as outras. Por sorteio, coube a mim homenagear a caçula que, àquela altura, já não participava plenamente da atividade, mas que curtiu imensamente ouvir minha singela cantiga que se iniciava assim:

Vou falar de uma pessoa

Pequenina como a Érica,

É a rainha dos jardins

E seu nome é Angélica.


Éricas

 Coerentemente, ela se foi na primavera. Tinha apenas 53 anos. O mundo fica mais pobre, muito menos florido. Enquanto houver um de nós, essa gente que, além de gostar muito de plantar, aprecia cuidar e contar um caso, seu nome e sua vida serão exaltados.


Angélica, com um amigo,  na chácara da família