Embora alardeasse que era apenas um rapaz latino
americano, Belchior era um letrista refinado; um poeta de primeira hora, que
teve sua formação básica em um mosteiro, onde leu clássicos e estudou
filosofia.
A leitura de sua biografia quase inevitavelmente leva-nos a
constatar o que o próprio Belchior já alertava: “Qualquer canto é menor do que
a vida de qualquer pessoa”. Era como se tivesse nos avisado previamente, qualquer
livro sobre mim, será sempre muito menor do que eu.
O autor, que é jornalista e crítico musical,
conversou com colegas, amigos e produtores de Belchior, para produzir a
biografia que foi publicada apenas quatro
meses após a morte do compositor; os trabalhos de pesquisa e entrevistas que
embasaram a construção da biografia, começaram com Belchior ainda vivo, e
parecem ter sido motivados pelo “desaparecimento” do compositor.
As diversas fases da vida do compositor, da
infância à morte, são relatadas praticamente em ordem cronológica. Em 15
capítulos, alguns com títulos que transcrevem partes das letras das canções do
biografado, há relatos sobre os anos em que ele viveu internado em um mosteiro,
onde estudou línguas, literatura e filosofia. Consta que nesse local, tenha se habituado
ao silêncio e à instrospecção, preparando-se para uma vida religiosa que
nunca se concretizou.
Foto Dayze Magalhães Gonçalves |
Nos anos 1970, o jovem compositor cearense migrou
para o Rio e Janeiro e depois para São Paulo. E muito cedo ganhou destaque como
artista, vencendo festivais de músicas e tendo suas composições interpretadas
por vozes famosas como as de Elis Regina e Roberto Carlos, por exemplo. Em
pouco tempo concretizou uma carreira sólida e muitas vezes solitária.
Comentários e interpretações interessantes do
cancioneiro do Belchior enriquecem o livro, que mais parece uma análise de sua
produção musical, do que propriamente uma biografia. O mérito maior do livro
está em revelar, ou melhor acentuar a riqueza poética das sofisticadas composições
do autor.
Pouco esclarecedores quanto aos motivos que levaram
ao afastamento de Belchior, vários depoimentos mencionados no livro deixam a
impressão que o seu propalado sumiço, (que,
de resto, não foi assim tão definitivo), nada mais era do que um legítimo desejo
do artista, de viver em paz e sossegado,
longe do assédio de bisbilhoteiros . Ou que o poeta tinha pouca vocação para
lidar com as ferozes exigências de um mundo excessivamente institucionalizado e
ávido por lhe transformar em um produto fácil de mercado. Isso fica evidente no
episódio que relata o assédio ao artista para fazer propaganda de automóvel, em
troca de cachê milionário, o que foi, prontamente rechaçado por ele.
O autor tratou como desaparecimento, o provável ostracismo
voluntário do artista. No entanto, reportagens divulgaram sua passagem por
diversas cidades do sul do Brasil e do Uruguai, no tempo em que esteve distante
dos noticiários. Neles veem-se Belchior e sua enigmática companheira quase
sempre fugindo do assédio e da curiosidade da imprensa.
Belchior foi muito maior do que a sua primeira
biografia pode mostrar. Esta pareceu-me um relato um tanto acelerado de um
gênio capaz de compor preciosidades do quilate de Como Nossos Pais, Mucuripe,
Paralelas e tantas outras.
A biografia registra que o compositor que era “alegre
como um rio, um bicho, um bando de
pardais”, num tempo em que “havia galos noites e quintais”, que dizia que “amar
e mudar as coisas” era o que lhe interessava estava a desenhar, a pintar quadros e
dedicava-se a traduzir, para uma linguagem popular, A Divina Comédia , de Dante.
Ao final, fica a impressão que o compositor, assim
como alertara em uma de suas letras geniais, “Não me peça que faça uma canção
como se deve, correta, branca, suave, muito limpa, muito leve...” queria ter
nos falado: não me peçam que viva uma vida como se deve, correta, branca, muito
limpa muito leve.
O livro deixa uma lacuna ao não revelar as possíveis razões que levaram o
compositor a optar por uma vida errante e misteriosa, praticamente recluso, morando
muitas vezes de favor em casas cedidas por amigos e fãs. O autor deixa mal
explicadas as relações familiares do rapaz latino-americano, tanto com pais, irmãos
e irmãs, bem como com os filhos e ex-mulheres. A biografia peca também, em minha opinião, por
não comentar a respeito do destino e do paradeiro das obras de Belchior, especialmente
quadros e desenhos, produzidos nos últimos anos de sua vida.
A mim, que fui
com muita sede ao pote, ao final, a biografia pareceu-me uma construção um
pouco apressada sobre a trajetória de um dos maiores gênios da música popular
brasileira de todos os tempos.
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