domingo, 30 de abril de 2017

HOJE É DIA DE FALAR DE BELCHIOR O DIA INTEIRO

Logo cedo veio a notícia triste da morte de Belchior.
Brasileiro, nordestino, cantador de feira e repentista, desceu para o sudeste e derramou seu talento por este país, sem parcimônia. Suas músicas foram gravadas por Elis, Fagner e outras grandes vozes. Suas composições embalaram muitos sonhos da minha geração e continuam a traduzir sentimentos e emoções de minhas filhas e de seus amigos que gostam de poesia e de boa música.
Garimpando em solo rico, passei boas horas revendo as canções desse gigante da MPB. É uma preciosidade atrás da outra. Difícil elaborar uma seleção. Fui pinçando versos, na tentativa de obter uma amostra do que foi a farta criação de Belchior.

Não poderia deixar de começar por Mucuripe, para mim, a mais meiga de todas as suas canções, poesia singela e comovente, coisa de grandes poetas.
“Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
La no campo inda era flor.” (Belchior, em Mucuripe).

A beleza brotava fértil em suas letras, uma construção mais rica que a outra. Ouvindo Belchior, a gente se pega perguntando como seria feio e sem graça o mundo sem poesia.
Não me peça que lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém (Belchior em Apenas um rapaz latino americano).

Como todo poeta e compositor, Belchior era também um bom filósofo.  Nunca deixou de questionar a impotência humana, e permitiu que  a dor escorresse sem parcimônia em suas letras fortes.
“O que é que pode fazer o homem comum
Neste presente instante senão sangrar?
Tentar inaugurar
A vida comovida inteiramente livre e triunfante”  (Belchior, em Conheço o meu lugar).

            Suas composições são feitas de versos que nos parecem palavras espontâneas, brotando repletas de beleza em suas letras. Traduzem  o indizível, aquilo que ele chamou lindamente de “coisas sem jeito”.
Eu estou muito cansado de não poder
De não poder falar palavra
Sobre essas coisas sem jeito
Que eu trago no meu peito” (Belchior em Todo sujo de batom).


            Perito com as palavras era mestre na arte de fazer brotar versos leves, compostos com metáforas e rimas despretensiosas, que podem parecer simples, mas que não  surgiriam a não ser de um pensamento  genial.

“...Eu era alegre como um rio,
Um bicho, um bando de pardais,
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais”. (Belchior em Galos, Noites e quintais).

            Quem não gostaria de ter escrito esses versos?
           
“Quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno.
Viver a divina comédia humana onde nada é eterno”. (Belchior em Divina Comédia Humana).

            As relações humanas, as interações familiares e seus difíceis consensos, seus inevitáveis conflitos, palpitavam em suas composições que tocam na gente de maneira singular.
“No centro da sala, diante da mesa
No fundo do prato comida e tristeza
A gente se olha, se toca e se cala
E se desentende no instante em que fala” (Belchior, em Hora do Almoço).

            E o seu grande desejo, qual era? A julgar pelos versos a seguir, não muito diferente do sonho de todos as pessoas de bem.
Amar e mudar as coisas,
Amar e mudar as coisas me interessa mais”
(Belchior em Alucinação).

            Nos últimos anos o compositor fez aquilo que já ocorreu a muitos de nós: sumir do mapa, desaparecer sem deixar rastros. Provavelmente não terá sido uma decisão fácil, pouco sofrida. Aliás, em uma de suas composições ele já deixava o recado:
“Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava” (Belchior em A Palo Seco).

Essa pequena amostra do repertório vasto e rico do compositor, pode ter resultado em um tosco mosaico, elaborado com remendos grosseiros e despropositais. Quis fazê-lo na esperança de despertar, nos mais jovens principalmente, o interesse em conhecer a obra de Belchior. Espero que pessoas mais hábeis tenham feito uma reverência mais digna ao grande compositor.

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