segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Sem Título


Nos dias em que a vida dói mais, como é corriqueiro nesses fechamentos de ciclos, me apego à ancestralidade e imagino raízes, tentando uma sustentação que sei impossível. Tempestades e abalos gerais são comuns nesse período.
A despedida desse tempo me remete aos feijões. Com poucos grãos, na primavera fiz o canteiro e a leguminosa germinou com fartura. É em seus pés que tento, inutilmente, me sustentar. Eles sequer possuem galhos e as ramas amareladas pendem de uma planta tenra, frágil como quem lhe cultiva. As vagens soltam grãos brilhantes e sadios que vão me alimentar com seu caldo cor de sangue.
Em um tempo em que os feijões não davam em prateleiras do supermercado, via meu pai chegando em casa suado, o cansaço  ostensivo. Era o fim da semana de trabalho e dessa vez, ele trazia nas mãos um único pé de feijão do qual brotaram 50 vagens. Ele atravessara as ruas da cidade pequena, empoeirada e triste. Naquele ano, a cultura tinha sido do  manteigão: grãos brancos, e grandes. Era alimento, mas era apenas uma amostra. As vagens robustas pendiam de uma planta quase mortiça, cujos galhos mal se viam transformados em frutos. Neles a terra se transformara percorrendo invisível e silenciosamente pelos veios do pé de feijão.
 Nesses dias despedidosos meu pai aparece plantando  roças e contando histórias, a alimentar suas crias, com feijão e sonhos. Sua presença é uma saudade no isolamento voluntário que me ofereço, deixando mais evidente a impossibilidade de não me curvar à imposição dessa tirana que vive a rondar todos os quintais.
Há algum tempo era quase insuportável escutar o silêncio de meu pai, que se ausentava devagarinho. Havia  gotas de suor e nenhuma lágrima. Seu corpo magro tinha fome de tabaco e nenhum ânimo para a comida. Estava entregue à dor e sem disposição para a morfina que sacrificava suas veias. Era já quase um vulto, exercitando a forçosa entrega, impossibilitado de seguir sem a fantasia da qual se alimentava.
Continua sendo essa, a sua lição mais difícil de aprender. A força e a coragem silenciosa de render-se ao desamparo inevitável sem queixas e sem resistência. Como o pé de feijão, de cujas vagens robustas, que se abrem ao menor toque, deixa surgir os grãos vermelhos de sangue e vida.
Meu pai e a terra. Ele e minha mãe.

Um comentário: