Um dos primeiros presentes
que me dei na condição de mulher à toa foi viajar a Belo Horizonte apenas para
assistir ao show da Maria Betânia. Não podia ter feito melhor escolha. Foi
encantador e diferente, pois, muito mais do que um espetáculo musical, o show foi um encontro de literatura e da mais fina
poesia. Intitulado Bethânia e as Palavras o evento constituiu-se de leitura de textos
escolhidos por Bethânia, ditos ao longo de sua carreira como cantora,
intercalados por músicas já consagradas em sua voz.
A grande intérprete da MPB, portadora
de uma voz inconfundível, completa 70 anos em plena forma. Não é de hoje que a cantora
transita entre a música e a literatura. Durante todo o seu percurso como artista,
inseriu textos, poesias principalmente, em seus shows e discos.
Logo na abertura do show, a cantora declarou: “ler, ouvir, dizer poesia hoje, nesse tempo de tanto
desapego, tanta correria, é uma tarefa difícil. É como provocar o mundo,
ofender o mundo, vivemos como se não coubesse mais o silêncio, as delicadezas”.
Como
era de se esperar, começou por Fernando Pessoa. Referindo se ao escritor
português, Bethânia expressou: “poeta da minha vida, fonte para minha sede,
poeta que sustenta a minha respiração, o ritmo desassossegado do meu coração”.
Logo de início, trechos da Tabacaria:
“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não
fiz...
Conheceram logo por quem não
era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada a cara
Quando a tirei e me vi ao
espelho,
Já tinha envelhecido....”
Descalça, leve e acompanhada
de dois músicos no palco, a cantora flana entre clássicos da literatura como Pe.
Antonio Vieira (“a nossa poesia é uma só”) e poetas populares como Patativa do Assaré.
Bela e oportuna escolha da cantora nesses tempos em que se discute redução da
maioridade penal:
“Meu bom Jesus Nazareno
Pela vossa majestade fazei que
cada pequeno
Que vaga pela cidade
Tenha boa proteção
Tenha em vez de uma prisão
Aquele medonho inferno
Que revolta e desconsola
Bom conforto e boa escola
Um lápis e um caderno”
Incluiu
também o professor dela e de Caetano no curso ginasial, Nestor de Oliveira Em suas aulas, disse Bethânia, ”além
de didática, aprendia-se a ouvir, ler e dizer poesia... Isso acontecia numa
escola pública no Recôncavo baiano. Falo sobre isso só para lembrar que é
possível sim uma boa e plena educação nas escolas públicas brasileiras”
Sua
leitura passou por Manoel Bandeira, Drummond, Ferreira Gullar e muitos outros.
E
as músicas que ia intercalando entre os textos incluíram composições de Paulinho da Viola, Vila Lobos, Dominguinhos e
claro, Chico, Caetano e Gil.
E
para coroar o magnífico espetáculo, Guimarães Rosa e trechos do Grande Sertão –
Veredas, em minha opinião a maior obra prima da literatura brasileira:
“O nome de Diadorim, que eu
tinha falado, permaneceu em mim. Me
abracei com ele. Mel se sente é todo lambente. – ‘Diadorim, meu amor...’ Como era que eu podia dizer aquilo?
E como é que o amor desponta?
Coração cresce de todo lado.
Coração vige feito riacho, colominhando por entre serra e varjas, matas e
campinas.
Coração mistura amores. Tudo
cabe...
Aquilo me transformava, me
fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora eu pudesse morrer, não
me importava...
No fim de tanta exltação, meu
amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em
Diadorim, de carregar Diadorim em meus braços, beijar, as muitas demais vezes,
sempre.
Abracei Diadorim, com as asas
de todos os pássaros.
Diadorim é minha neblina.
A lamentar do encontro, apenas a sua duração. Uma
hora foi muito pouco. Achei necessário comprar o livro do show, Caderno de Poesias - Maria Bethânia. A obra é
da editora da UFMG e reúne os poemas, textos ficcionais e canções organizadas
pela cantora e que fazem parte do espetáculo. O livro é belamente ilustrado com
reproduções de quadros de importantes artistas brasileiros, como Tarsila do
Amaral, Portinari e Caribé, entre outros e vem acompanhada do DVD com o conteúdo
do show.
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