sexta-feira, 31 de maio de 2019

A PROPÓSITO DO MOMENTO


Ao ler Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus, ficou difícil não lembrar do bordado, Cloves, de Bispo do Rosário, no qual ele decreta: “Eu preciso dessas palavras...”.

Ambos pretos, pobres e invisíveis, Carolina e Bispo produziram, nos ambientes mais improváveis, retratos inconfundíveis de um Brasil tresloucado.  Que deixa gente passar fome e que confina em uma solitária, pessoas que pensam diferente.

Catando poesia em lugares inusitados, Carolina faz um livro inesperado. Nele ela nos conta que transitava por vias, ruelas e becos e algumas vezes ia à cidade. Seu pouso diário era um barraco na favela do Canindé, em São Paulo, que  a escritora, muito acertadamente, intitulou quarto de despejo. Para onde -, ela nos lembra, são encaminhados os entulhos, os restos, aquilo que nada vale e que provavelmente será descartado.

A partir da favela e com um olhar eminentemente feminino e materno, ela foi construindo o seu relato quase monótono, pois, todos os dias, precisava encontrar o que comer e alimentar seus três filhos menores. A comida, (se é que podemos chamá-la assim), era descoberta nos restos de produtos vencidos, desprezados pelas fábricas de alimentos, ou descartados ao final das feiras. Também era obtida na carroça de ossos desprezados pelos abatedouros de animais. Carolina escrevia porque precisava escrever. Para não ficar louca, para não se matar, para não se tornar uma criminosa.

Arte de Bispo do Rosário
Ao produzir o seu diário,  Carolina de Jesus fez algo parecido com o que Bispo do Rosário construiu. Como se sabe ele viveu, por mais de 40 anos, em um internato para doentes mentais, às vezes confinado em uma solitária. Ali, inusitadamente, coletava lixo e restos, desfiava lençóis para obter linhas e com isso, criou instalações, assemblages e bordados, montando peças de instigante harmonia e beleza. Provavelmente fez isso pelos mesmos motivos de Carolina, ou seja, para não matar ou morrer.

Onde havia apenas privação e descaso, a partir de lixo,  descartes e sobras, esses dois sobreviventes do descaso público criaram o inesperado. Ousaram ser artistas, no meio da fome, da miséria, da ignorância, do confinamento e da indignidade.

A propósito do momento tão bizarro que estamos vivendo no Brasil, especialmente com o anuncio de grandes cortes na área da educação e o ataque desrespeitoso às universidades, não me contenho e reflito em como perdemos a oportunidade de ter grandes nomes na cultura nacional.


Mesmo importantes como são, quanto maiores não poderiam ter sido Carolina e Arthur, se tivesse tido a oportunidade de acesso a uma boa formação? Obviamente não me refiro apenas a boas escolas, mas também ao acesso à cultura, à possibilidade de viagens, e todo um vasto conjunto de alternativas que fomentam e instigam a capacidade criadora.

Esses dois brasileiros nos contam que milagres existem. Que no lixo e na fila da bica d´água, em meio à sujeira, à pobreza e à maledicência, também se acha poesia. Que a arte pode brotar do desrespeito e da crueldade do confinamento. Que o impulso criador pode alimentar a esperança e incitar rasgos de dignidade, sem os quais não há vida. 

Ensinando e aprendendo ...
Escrevo sobre isso também a propósito das animadoras manifestações de ontem que, praticamente no país inteiro, lançaram seu grito em favor da educação e da cultura. E também enlevada por um encontro lindo que tive hoje com crianças do quarto ano do ensino fundamental, da Escola Municipal  N. Sra de Fátima, do Bairro Laranjal, na periferia de Viçosa. Onde passei a tarde contando histórias e tentando ensinar gente miúda a sonhar. 


Pessoas como Carolina e Bispo do Rosário me mostram que, mesmo quando brota no esgoto, a arte pode nos manter de pé. E me lembram que se valorizarmos e promovermos a educação, poderemos minimizar bastante as mazelas dessa nossa pequena jornada sobre o planeta azul.
 a sonhar


sábado, 20 de abril de 2019

TEMPOS DE QUARESMA


Sabia-se que o tempo de mais medo havia chegado, quando depois da chuvarada de dezembro e janeiro, os matos ficavam muito densos e as  capoeiras, mais escuras,  manchavam-se com aquela cor triste das quaresmeiras em flor. Nas igrejas  e nas casas, os santos eram cobertos com panos roxos e, nesse período, até a banda tocava mais baixo e mais triste.

Contava-se que mulas sem cabeça e lobisomens andavam soltos depois da meia noite. E ninguém se espantava muito com relatos envolvendo outros entes esquisitos, como fantasmas, espectros e assombrações. Não era preciso dizer às crianças que era tempo da Quaresma. O florescer das árvores roxas além de pontuar de beleza a capoeira verde, indicava que era época de jejuns e abstinências.  
As noites pareciam mais escuras,  as  tempestades mais fortes, as casas maiores e os caminhos mais longos. As histórias eram muitas. Muitas mais do que as tantas do ano todo.
À noite vinham os homens com suas matracas para encomendar as almas. A ordem era para que as crianças não se levantassem da cama, muito menos chegar à janela. A avó já tinha avisado:
− Se não querem virar alma penada, tratem de ficar deitadas debaixo das cobertas, nada de faniquitos.
Mas era tempo de calor e a curiosidade maior que o medo. Então, contrariando as ordens, eu me levantava pé ante pé, para não acordar as primas e as irmãs que dividiam aquele quarto de infinitas possibilidades, onde em três camas cabiam sete meninas.  Quando o som começava a ficar bem próximo, eu ia à fresta da janela e constatava que, apesar dos ruídos fartos, os homens eram pouco mais de meia dúzia. Via almas penadas que voavam envoltas em lençóis brancos na noite escura feito breu. Pareciam brincar suspensas sobre a cruz alta do terreiro,  enfeitada de papel de seda.
Suspeitava que pudessem ter saído do quarador,  as roupas que dormiam na bica, para onde as tias as levavam em bacias sobre rodilhas de pano nas cabeças. A mina d´água ficava a poucos passos da casa, protegida por um maciço de bananeiras, logo depois do canavial que circundava parte da construção. Um  cano de bambu  jorrava água limpa e farta sobre o tendá de madeira; ao lado, o batedor, também de madeira e, à frente, o quarador de vedélias, onde se estendiam lençóis, fronhas e toda a roupa branca da casa, inclusive as anáguas das mulheres e as ceroulas dos homens.
Enquanto eu via o bailar descompassado das almas penadas, homens feito espectros enegrecidos pela noite escura, moviam-se ao som das matracas invisíveis, girando mais rápidas que a pedra do moinho  que rodava noite e dia.
Em casa, o silêncio denunciava que todos fingiam dormir. Até os gansos e os cachorros, que não poupavam estranhos que chegassem à noite e desandavam a grasnar e a latir, permaneciam mudos, como se estivessem hipnotizados pelo bailar dos lençóis e pela autoridade mágica dos homens que vinham encomendar as almas.
Depois que iam, ouvia-se o coaxar de sapos e também mugidos de bezerros presos no curral, enquanto as vacas dormiam no pasto para juntar o leite que seria retirado de manhãzinha.
Sobravam, no dia seguinte, um cheiro de alecrim queimado e rastros  de homens grandes na poeira do terreiro.
Quando o sol recém-nascido lançava seus raios sobre a roupa branca no quarador, confundindo os meus sonolentos olhos, eu não segurava a curiosidade e perguntava à minha mãe quem eram eles, os homens que vieram à noite. E ela, com o devido respeito à sogra,   dizia, disfarçadamente, que não se sabia quem encomendava as almas, que as matracas guiavam os escolhidos nas noites da Quaresma.

terça-feira, 16 de abril de 2019

BANDEIRA PARA UMA SANTA INEXISTENTE



Procuro desesperadamente
Por uma santa protetora
Dos cientes do desemparo,
Dos temperamentos esquisitos.
Árvore da Saudade
(Bordado inacabado)
Que dê consolo aos insones
E promova a paz dos ansiosos.
E equilíbrio aos desajeitados.

Que abençoe inconformados
E proteja os que pelejam
Com desrítmos e zumbidos,
Constipações e gastrites,
Dentre outras mazelas.
Que não cobre fé intransigente,
Nem exija crença incondicional,
Impossíveis aos fracos como sou.

Prometo fazer-lhe um bordado,
Com todo o amor e esmero
E a mais teimosa obstinação.
Será de todos os estandartes,
Provavelmente o mais sofrido,
Brotado da dor e da angústia.
Sem nomes e sem limites.

Seja feita com muita esperança
Toda a arte e muita crença
Essa bandeira redentora.


sábado, 30 de março de 2019

UM CONVITE E UMA PEÇA MUITO ESPECIAL


Há bastante tempo ensaio uma peça da padroeira da minha terra.
Mãe de nossa Senhora, portanto avó de Jesus, Sant´Ana é cultuada ostensivamente na minha família, que possui tantas desse nome, quer sejam, Donana, Sanita, Ana somente, ou  Ana Maria, Ana Luíza e outras Anas.
A santa  que é patrona das avós, dos professores e dos contadores de histórias, vem sendo representada, na maioria das vezes, com um livro nas mãos e a filha ao colo, ou aos seus pés.
Penso que Sant´Ana deve ter sido uma mulher à frente do seu tempo, pois nos a. C., devia ser bastante incomum que uma mãe ensinasse sua filha a ler.
Sabemos que até bem pouco tempo atrás, havia famílias que privilegiavam a educação dos filhos homens, alegando que as mulheres não precisavam estudar, porque isso as fariam independentes demais.
Não conheço imagem da mãe de Jesus vestindo cor de rosa. Suas representações, quase sempre, a mostram usando túnica e manto da cor do céu, ou na cor crua. Certamente influenciada pela mãe e, ao contrário do que disse certa ministra, Nossa Senhora nos conta que não é de hoje que meninas vestem azul.
Na peça que acabo de compor, especialmente para uma exposição que inauguraremos no dia 10 de abril próximo, na PUC-BH, utilizei uma foto da imagem clássica que adorna o altar principal da igreja matriz da minha terra.
Sant´Ana - Foto de
Luiz Henrique do Carmo
Adotei o cetim azul como pano de fundo e nele dispus, além da estampa, enfeites em crochê, pequenos retalhos bordados e flores, entre outros ornamentos. Assim pretendi homenagear minhas duas avós e minha querida e inesquecível irmã, que era paisagista, e tinha o nome da santa. Dispus também algumas letras e a frase, Era uma vez, lembrando e enaltecendo todos os educadores que atuam nesse nosso país tão displicente, (para não dizer coisa pior) com a educação.

sábado, 23 de março de 2019

A CARTA DE CAZUZA


Há mais de 30 anos, no dia 18 de abril de 1988, durante um show no Canecão, no Rio de Janeiro, Cazuza provocou a ira de muita gente com um gesto seu. O que não era algo muito incomum, já que ele foi um artista bastante polêmico até mesmo ao lidar com a própria doença.
Recentemente, em viagem ao estado do Rio, visitei, em Vassouras, o recém-inaugurado Museu do Cazuza. Instalado em um casarão antigo no centro da cidade, que é a terra natal da mãe do artista, o museu possui um acervo interessante, com peças de vestuário, instrumentos e farta documentação fotográfica da curta, porém profícua carreira do músico.
O que mais me impressionou, no entanto, durante a visita, foi reler a carta escrita por Cazuza, no já distante ano de 1988, e constatar a sua atualidade. Como aliás também continuam bastante atuais as letras de suas canções.
A carta
Eis a íntegra da carta:

"Está havendo uma polêmica, um escândalo, como diz o JB de terça-feira, 18 de outubro, com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música Brasil no meu show de domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da plateia.
O senhor Humberto Saad declarou que eu não entendo o que é a bandeira brasileira, que ela não simboliza o poder mas a nossa história. Tudo bem, eu cuspo nessa história triste e patética.
Os jovens americanos queimavam sua bandeira em protesto contra a guerra do Vietnã, queimavam a bandeira de um país onde todos têm as mesmas oportunidades, onde não há impunidade e um presidente é deposto pelo 'simples fato de ter escondido alguma coisa do povo.
Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnã é logo ali, na Amazônia, que as crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhos puxados? Que a África do Sul é aqui, nesse apartheid disfarçado em democracia, onde mais de cinquenta milhões de pessoas vivem à margem da Ordem e Progresso, analfabetos e famintos?
Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela no Rock'n'Rio junto com uma multidão que acreditava que esse país podia realmente mudar. A bandeira de um país é o símbolo da nacionalidade para um povo. Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto, estamos esperando".
Estátua de Cazuza. Ao fundo o terno branco de
um dos seus últimos xhows