Ao ler Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus, ficou
difícil não lembrar do bordado, Cloves, de Bispo do Rosário, no qual ele
decreta: “Eu preciso dessas palavras...”.
Ambos pretos, pobres e invisíveis, Carolina e
Bispo produziram, nos ambientes mais improváveis, retratos inconfundíveis de
um Brasil tresloucado. Que deixa gente
passar fome e que confina em uma solitária, pessoas que pensam diferente.
Catando poesia em lugares inusitados, Carolina faz
um livro inesperado. Nele ela nos conta que transitava por vias, ruelas e becos e algumas vezes ia à cidade. Seu pouso diário era um barraco na favela do Canindé,
em São Paulo, que a escritora, muito acertadamente, intitulou quarto de despejo. Para
onde -, ela nos lembra, são encaminhados os entulhos, os restos, aquilo que nada
vale e que provavelmente será descartado.
A partir da favela e com um olhar eminentemente
feminino e materno, ela foi construindo o seu relato quase monótono, pois,
todos os dias, precisava encontrar o que comer e alimentar seus três
filhos menores. A comida, (se é que podemos chamá-la assim), era descoberta nos
restos de produtos vencidos, desprezados pelas fábricas de alimentos, ou
descartados ao final das feiras. Também era obtida na carroça de
ossos desprezados pelos abatedouros de animais. Carolina escrevia porque precisava escrever. Para não ficar louca, para não se matar, para não se tornar uma criminosa.
Arte de Bispo do Rosário |
Ao produzir o seu diário, Carolina de Jesus fez algo parecido com o que Bispo
do Rosário construiu. Como se sabe ele viveu, por mais de 40 anos, em um internato para doentes mentais, às vezes confinado em uma solitária. Ali, inusitadamente, coletava lixo e restos, desfiava lençóis para obter linhas e com isso, criou instalações, assemblages e bordados, montando peças de instigante harmonia e beleza. Provavelmente
fez isso pelos mesmos motivos de Carolina, ou seja, para não matar ou morrer.
Onde havia apenas privação e descaso, a partir de
lixo, descartes e sobras, esses dois sobreviventes do descaso público criaram o
inesperado. Ousaram ser artistas, no meio da fome, da miséria, da ignorância, do confinamento e da indignidade.
Mesmo importantes como são, quanto maiores não poderiam ter sido Carolina e Arthur, se tivesse tido a oportunidade de acesso a uma boa formação? Obviamente não me refiro apenas a boas escolas, mas também ao acesso à cultura, à possibilidade de viagens, e todo um vasto conjunto de alternativas que fomentam e instigam a capacidade criadora.
Esses dois brasileiros nos contam que milagres existem. Que no lixo e na fila da bica d´água, em meio à sujeira, à pobreza e à maledicência, também se acha poesia. Que a arte pode brotar do desrespeito e da crueldade do confinamento. Que o impulso criador pode alimentar a esperança e incitar rasgos de dignidade, sem os quais não há vida.
Pessoas como Carolina e Bispo do Rosário me mostram que, mesmo quando brota no esgoto, a arte pode nos manter de pé. E me
lembram que se valorizarmos e promovermos a educação, poderemos minimizar
bastante as mazelas dessa nossa pequena jornada sobre o planeta azul.
a sonhar |
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