Contos

TIBÉRIO, O LÚCIDO

Tibério Lucio do Nascimento, nascido em 1977. Mulato, magrela e baixinho. Por algum tempo, sobrevivente. Depois dos dezoito, muitas vezes passou por Barbacena, que até essa época ainda mantinha suas casas de manicômio. Solto depois da lei, deu de perambular pelas ruas, pois nessa época nem família mais tinha.
Sua mãe de nome Florinda, aos dezessete anos fugira de casa com um artista do circo. Apesar do que todos pensavam, ali a vida era apertada, ninguém podia ficar sem trabalhar. Tinha o corpo bonito, puseram-lhe um maiô de lantejoulas e ela virou a engolidora de fogo. Foi só o que conseguiu aprender das muitas artes da lona. Seis meses depois a barriga já aparecia. Assim que nasceu o menino, entregou-o à irmã mais velha, pois o circo andava e ela queria seguir seu homem.
No princípio a tia lhe dava o peito. O leite ainda minava, resto de seu menino mais novo, que, com um ano e meio, se tornara um anjinho, vencido pela diarréia. Passados seis meses o leite da tia já era pouco, então ela lhe dava feijão com angu, que é isso que engordava pobre, antes do bolsa família. Assim Tiberinho sobreviveu até os três, quando sua tia o deixou. Morrera aos quarenta anos magra de dar dó, a pele preta, cada vez mais russa. Tinha sido tomada por aquela doença, a malvada, que mata até quem tem muito tratamento. Deus levou a coitada que mal tivera tempo de esperar na fila o atendimento depois de marcar, de madrugada a consulta, seis meses atrás. O marido, carroceiro de muitos anos não achava mais frete. Toda a cidade dera de se incomodar com os burros e cada vez levavam o ponto para mais longe. Resolveu, foi embora. Deixou o menino, não era dele mesmo. Seja o que Deus quiser pra esse moleque. Desde que a mulher adoecera, há coisa de um ano, a criança já vivia mais era na rua mesmo.
Perambulando, desde pequenininho, o menino Tibério, sempre magrela aprendeu a usar dois recursos: o galope e a palavra. Com o galope fugia dos cascudos do homem da venda, toda vez que aparecia na porta pra pedir uma bala ou biscoito aos minguados clientes do botequim de ponta de rua. ‘Vai trabalhar vagabundo, não tem vergonha na cara não?
Parece que usava as palavras para se equilibrar. Cambaleava e dava berros como se alguma vertigem estonteante lhe obrigasse a buscar apoio para se manter de pé. Mas nunca chegava a cair, porque ao soltar o verbo se recompunha.
Pedinte de quem quase nada tinha, acostumara-se com um teco de pão velho, um pedaço de rapadura, ou um osso de frango já comido, o qual ia roendo, até desaparecer. Nas cercas dos pequenos quintais sempre brotava um pé de cipó de São Caetano, cuja baga madura explodia em sementes vermelhas que eram chupadas até o caroço. Goiabas e outras frutas do mato, também lhe serviam, assim como os restos dos legumes descartados pelos mercados.
Vestia sempre uma bermuda que poderia ter sido um calção de seu dono original, uma camiseta da qual não se podia dizer ser velha, pois já era um trapo. Calçava às vezes, chinelos de dedos. Frequentemente os dois pés eram de um só, ou se fossem diferentes, tinham cores variadas. Na mão sempre carregava um pano encardido. Como se fosse uma capa de toureiro, brandia o tecido em defesa da luz do sol, ou em ameaça a quem com ele mexia. ‘Fédaputa, disgraçado, vai mexer com mãe!’.
Carregando sempre seu manto, ia lhe prendendo com os dentes pequenos anéis de metal que encontrava pelas ruas, elos de correntes arrebentadas, das mais porcarias, bugigangas, alças de cintos e fivelas enferrujadas. Todas essas tranqueiras lhe atraíam de tal sorte que nenhuma delas podia lhe escapar ou ficar perdida. Assim foi construindo sua capa, seu manto de paixão, do qual não se desgarrava por nada.
Quando era visto, passava o dia perambulando e gritando. Parecia que, das palavras tirava sua energia. Se alguém lhe perguntasse algo respondia com impropérios: ‘eu vi sua mãe na zona, seu desgraçado’. Tibério falava e gritava, gesticulava e, às vezes até cuspia. Como se espirrasse pela boca. Nem era preciso estar tão perto para perceber o jato molhado que expelia de seus berros.
Inicialmente acompanhados de pequenas fagulhas de fogo, ou luz, aos poucos o ressoar dos gritos desarticulados, foi se intensificando em claridade, faíscas brotadas da língua vermelha. Em formato de estrelas saltavam a um metro ou mais de distância. Mais altas do que sua boca, percorriam uma curva no ar e caíam ao chão, apagando-se imediatamente. Quanto mais fortes e indecentes eram os palavrões, mais brilhantes os jatos de claridade que dela emanavam.
Às vezes, tinha pequenos momentos de calma. Sentava-se a um banco, ficava calado, parecia refletir. Noutras poucas, caminhava calado, passos desengonçados, corpo arqueado prá frente e a cabeça erguida. Mas como se a lucidez lhe fosse insuportável, por muito tempo, logo explodia em gritos. O corpo se punha em desalinho, os braços frenéticos, como em tremores descontrolados, convulsivos e desalinhados, mãos e punhos cerrados, dedos em riste, as pernas ficavam trôpegas. Lembrava uma marionete desengonçada, como quando se deixa o barbante bem solto naquelas que se manipulam com uma cruzinha de bambu.
Não se sabe quando Tibério começou a soltar luzes. Assim como quem solta pum, elas vinham e beiravam explodir seu dono, então ele abria a boca larga, tão preta por fora, quanto vermelha por dentro. Ao soltar impropérios e palavrões, a luz saía em fachos. Dizem que queimava. Quem se aventurou chegar perto pode sentir e saiu chamuscado. Em coisa de segundos, apagava. Assim como o fogo não vive sem o ar, essa luz que era feita da energia de Tibério minava logo assim que era cuspida do ventre. Saía e, mal fora dele, perdia o vigor e apagava.
Tantos viram e relataram que o caso virou notícia, até em jornais da capital. Teve quem pensasse em comprovar tal façanha, submeter o Tiberinho ao método científico, verificar, medir e testar, explicar se o que fosse possível. Tudo sob os rigores da ciência, que não era para brincadeiras, nem para especulações mal fundamentadas. Mas tinha um problema: o moço não se deixava pegar, era arisco que só. Nem sabiam onde morava, se é que tivesse moradia que não fosse a rua.
Toda a vez que tentavam lhe jogar o laço, o molejo de quilombola lhe salvava a pele com simples gesto de capoeira, um passo antigo, ou um gingado novo recém-inventado. Variavam as ofertas: uns tragos de cachaça; ou uma dose de café–com-leite–com- pão-com- manteiga. Até mesmo uma roupa nova, uma camisa cor de fogo, ou um par de botinas de solado novo. De tudo fugia com o desdém e a malemolência de quem fora criado nas ruas. Da luz que lhe brotava não tinha consciência, como parece que, de resto também quase nada.
De onde vinha tal luz? - De um Ser superior. Era a convicção dos crédulos, dos milagreiros. Da energia física que emanava de sua voz potente e gutural ao relatar suas constatações: ‘essa aeronave voa, voa no espaço sideral’, dizia Tiberinho sábio diante de um monomotor parado no pátio de ciências de uma escola requintada. Outra vez emitia esconjuras apavoradas, influenciado pela notícia de tv de que num lugar qualquer fora visto um homem com cabeça de cabra. Nessas ocasiões podia demonstrar certa lucidez, às vezes as palavras eram articuladas com alguma precisão e até se podia pensar que ele havia se instruído, frequentado escola, mas disso não se tinha notícia.
Na maioria das vezes, o que ele dizia eram esquisitices. E junto com elas, Tiberinho continuava cuspindo luzes. E eram de tal intensidade que ficava difícil dizer que não viu, como até mesmo os meio surdos não deixavam de ouvir seus discursos desde manhã cedo até o anoitecer.
Mas isso não era todo dia. Pois muitas vezes ele sumia, sem dar nenhum aviso prévio. Tal como o funcionário relapso ele se sentia o senhor do seu tempo de dos seus dias. Nesses em que não aparecia, quase ninguém se importava.
- Quem com esse dia-a-dia tão atribulados, com pouco tempo pra tudo, ia pensar nesse negrinho, minhas filhas? Esse menino é apenas um descabeçado, desses que a lei deixou sem ter pra onde ir, já que não pode mais internar. É bom pra gente ficar livre de tanto barulho, a cidade já com tanta poluição sonora. Era bom que ele continuasse no manicômio. Pelo menos davam um banho de vez em quando, raspavam a cabeça e cortavam as unhas. Também tinha comida. Já ouvi falar que os doídos comem até tripas de frango, cruz credo, isso deve de ser mentira, ou intriga de outros internos.
Havia os dias de banho e todos sabiam quando ele tinha sido submetido ao ritual que o deixava mais possesso do que nunca. Era quando os filhos de seu Romano, mais uma molecada aí por volta dos dezessete anos, pegavam o coitadinho e, com a conivência do frentista do posto de gasolina, davam-lhe uma ducha na mangueira do lava-jato, com direito a muita espuma de saponáceo automotivo, próprio para destacar o brilho. Ai é que o Tibério, tomado de fúria indescritível, lançava os maiores impropérios, ‘mulecada dos inferno, do capeta, da putaquepariu’. Cada vez mais as palavras vinham sempre acompanhadas de brilhante luz, como jamais havia sido visto. Nem o sino da igreja chamando pra missa da noite podia competir com seus gritos e nem a luz da estrela d´alva, a primeira a nascer e a mais brilhante, lhe ofuscava o brilho.
A luz de Tiberinho e seus palavrões lançados na cara das gentes de quem quisesse ou não, eram o mais forte apelo, que mesmo aos surdos, aos cegos, aos mudos e imobilizados, podia provocar as mais fortes repugnâncias: ânsias de vômito, nojo, vontade de atravessar a rua... Por isso se fechavam os olhos, mudavam-se de calçada, ignoravam, assim era melhor.
Havia muito tempo, a máquina de ferro já não passava na cidade. No lugar do trem iam se espalhando camelôs, carroças de burro, lavadores de carro, amontoados de lixo e entulhos. Vez por outra apareciam gato e cachorro mortos, um feto abortado, roupas em trapos jogadas ao léu, vasilhas velhas e amassadas e até viventes, debaixo de quatro paus fincados com uma lona preta por cima. Soube-se que Tibério viveu por lá. Por quanto tempo não se calcula.
Tibério Lúcio do Nascimento, o Lúcido, ali foi encontrado. Seu esqueleto ainda mais magro, ainda mais preto, foi descoberto numa tarde qualquer. Já era banquete de um bando de formigas. Mesmo que não pudessem ser vistos, certamente bichos menores e vermes também estavam a manjar o corpo que começava a se apodrecer. A boca continuava aberta, apenas a língua era vermelha. Do fundo da goela saía ainda uma facho mortiço de luz, naquele amontoado encardido.
Era preciso exumar esse corpo. O mundo quereria saber de onde vinha a luz. Em alguma glândula, num neurônio qualquer ainda não catalogado nos demais viventes, tinha que estar o segredo dessa energia, que se transfigurava, por meio de palavras e gritos, em clarão de luz.
Como era um indigente, seria fácil obter junto ao poder público a autorização para a exumação do cadáver, que depois de devidamente lavado seria encaminhado à escola de medicina da capital, a única no Estado com condições de investigar tal fenômeno. Talvez mesmo lá, diante da complexidade da empreitada, tivessem um ataque de modéstia e decidissem por encaminhar o corpo a um instituto americano, esse sim, devidamente credenciado para dar todas as explicações, até mesmo as mais inusitadas.
Como fora encontrado à tarde, as providências se estenderam pelo cair da noite. Então a polícia foi chamada, para dar guarda ao corpo, até o dia seguinte, quando seria transladado.
Algumas almas caridosos, quase todas mulheres rezaram um terço. Religiosos, de diversas crenças, pleitearam o direito de encomendar essa alma sofredora. Lá pelas nove todos já tinham ido. A novela dos mutantes estava nos últimos capítulos e ninguém queria perder.
De manhã o carro funerário parou diante da capela mortuária, dele descendo dois policiais que, com a ajuda do motorista e de mais um ajudante, vestido de branco, iriam cuidar do transporte do corpo. Assim foi feito. Enquanto os trâmites para o recebimento no centro anatômico da escola de medicina eram providenciados, o velocímetro indicava quantos quilômetros havia percorrido o corpo do Lúcio. A viagem fora sossegada, o motorista da funerária fazia esse percurso praticamente todos os dias, pois sempre morria gente na capital, cuja família residia na cidade e queria ali velar o corpo e dar morada final aos seus filhos. Com Tiberinho o trajeto era o contrário: como ele não era de ninguém, a cidade não precisava se preocupar onde repousaria seu louco mais extraordinário. Ele seria estudado pelos doutores e ia ajudar no futuro a elucidar muitas dúvidas. Desde os cérebros mais iluminados aos mais toscos, todos se beneficiariam com as descobertas da ciência. Algum tempo depois uma multinacional da indústria farmacêutica se apropriaria do conhecimento adquirido por anos de pesquisa em laboratórios do governo e lançaria mais um psicotrópico, desses capazes de sossegar um elefante louco. E todos dormiram tranqüilos.
Na hora do desembarque, quando dois grandalhões vestidos de branco e com máscaras, luvas, botas e óculos se preparavam para retirar o corpo e transportá-lo à maca, perceberam que o caixão estava tão leve, mas tão leve que mesmo que o defunto fosse franzinho, como havia sido dito, não era possível pesar tão pouco.
Ao abrir nada entenderam. Depois de tanta insistência do delegado daquela cidade para que recebessem o corpo, só podia ser brincadeira. No ataúde, no lugar do corpo, jazia um estandarte esplendoroso. Uma bandeira, um manto bordado, em um tecido de fundo branquíssimo, de ofuscar as vistas. Uma coisa linda. No centro frontal luzia uma estrela de ouro, que de tanto brilhar perturbava as vistas dos dois homens embasbacados. Em volta dela algumas faíscas de um minério brilhante.
Encantados com a beleza extraordinária da peça, olhos arregalados, bocas abertas, pasmos de admiração, aqueles dois auxiliares de serviços de necropsia tocaram imediatamente as quatro mãos trêmulas na estrela dourada.
Como se tivesse vida própria, a estrela desprendeu-se do tecido, escapuliu, rodopiou no ar, baixo e lentamente em princípio. Depois foi girando pro céu, onde virou luz que reflete durante todo o dia, até com sol quente.
Mesmo sem a sua estrela principal o manto continuava lindo. Branco como a mais pura neve, salpicado de brilhos os mais dourados que se pode imaginar. No centro, o buraco da estrela. Olhando de perto se podia ver melhor: cada pequeno brilho formava um holograma de significado desconhecido.
Tal preciosidade não poderia ficar por ali. Trouxeram o resto do manto de volta e o depositaram em ataúde de vidro que fica exposto na praça principal, prá todo mundo ver. Não há choro de morte, nem solidão do abandono, que não possa ser amenizada por essa beleza sem fim.
Desde então, aquela pequena cidade atrai fogosa romaria que vem, ano após ano, em busca da luz do Tibério, aquele menino magrela da rua, da linha do trem.
De uns tempos para cá andam dizendo que a luz tá aumentando de brilho, dia e noite, cada vez mais. Já pensaram em instalar um medidor de intensidade de luz. Mas o poder público não anda interessado. Fica cuidando de estabelecer estratégias para ampliar e fortalecer o turismo local. Já criou programas de apoio ao comércio e aos serviços de atendimento ao turista. Capacita agentes para contar a história do Tibério. Já circula uma versão dela na internet e um grupo de teatro encena a sua história.
Enquanto isso o brilho e o calor aumentam. A continuar assim, muito antes do final dos tempos, a cidade em breve vai pegar fogo e arder no brilho de Tibério, até o acabar de tudo.