domingo, 29 de dezembro de 2024

VIRADA DE ANO

 

A realidade precisa ser completada pela ficção para tornar a vida mais fácil ...”.  (Pedro Almodóvar, em O último sonho. Cia das Letras, 2024. P. 93)

 

Na primeira hora 12 do dia, já era noite, naquele tempo tomado por densa escuridão. A mulher se percebeu assustada, não apenas com o fenômeno, também pela indiferença geral em volta.

Na rua como de hábito, a maior frequência de carros, devido à abertura dos portões da escola, na via de cima.

Exalava-se o cheiro habitual de fritura, no restaurante próximo que cumpria rotineiramente o horário de almoço, confirmado pelo intenso movimento de pessoas saindo e entrando dos carros que disputavam ansiosos uma vaga.

Sem se importar com a escuridão, as flores da onze horas do canteiro anexo à casa ostentavam plenas suas sedosas pétalas coloridas e brilhantes.

Chegando do trabalho suada, a filha lavou displicentemente as mãos e sentou-se à mesa do almoço, no mesmo ritmo de outras épocas. De vez em quando interrompia a refeição e dava olhadas no aparelho. Numa uma dessas, pousou os talheres à mesa e, ao que parece, respondeu uma mensagem.

Curiosa porém contida com a indiferença da moça às mudanças do tempo, a mulher levantou-se da mesa e recolheu com displicência as louças e talheres, depositando-os na pia.

Do lado de fora, deu comida ao cachorro e renovou a água da vasilha.

Ainda cansada da rotina dos festivos dias anteriores, dirigiu-se ao quarto e acendeu as luzes sem saber se deveria ingerir os medicamentos da noite. Escovou os dentes e cumpriu o ritual das loções e dos cremes ante rugas. Antes de deitar, deu uma olhada no aparelho, onde havia uma mensagem dessas emitidas por dispositivos automáticos, confirmando seu horário de atendimento com a doutora Diana, para as quatro da tarde.

Sentia-se muito confusa, mas precisando dormir.  Disposta a cumprir seus compromissos, a mulher programou o aparelho para acordá-la às 15: 00 h.

Não chegou a dormir profundamente, mas teve um pesadelo no qual comparecia nua ao salão de cabelereiro, para pintar as unhas. A recepcionista, os demais profissionais do estabelecimento, assim como os frequentadores encontravam-se vestidos como de costume e não manifestaram estranheza diante de sua nudez.

Levantou-se da cama, perdida no tempo, e se arrumou com pressa, saindo de casa pela porta da garagem.

No consultório odontológico onde chegou à recepção esbaforida e confusa, tudo parecia normal. O sorriso muito branco da assistente dava um bonito contorno ao anúncio de que a doutora estava 15 minutos atrasada. O barulho inconfundível do motor, vindo da sala de atendimento demonstrava que a dentista ainda cumpria a rotina de tortura com o cliente do horário anterior. Há trinta anos ela era paciente desse mesmo consultório. Endereço, equipamentos e assistentes mudaram. No entanto, o motor ainda parecia o mesmo, emitindo o seu infernal ruído.

Não demorou a ser chamada. A visita ao consultório constou de um pequeno procedimento de reconstituição de uma obturação que havia se trincado. Enquanto era atendida, imóvel e de boca aberta, ficou se perguntando se antes era comum que os dentistas trabalhassem com escuro.

Consultou o relógio que teimava em manter no pulso, ao sair para a rua. Para quase todo mundo esse era um objeto estranho e fora de moda. Cinco horas e o dia clareava. Desde o Natal a chuva não dera trégua e diferentemente dos dias anteriores, o sol se ostentava no alto dos morros e no topo dos edifícios. Cheiro de pão fresco saindo do forno exalava de algum estabelecimento fechado. Ônibus passavam lotados e ela não soube precisar se as pessoas iam ou vinham do trabalho.

Como se houvesse acabado de chegar em um país distante, cujo fuso horário confundia as percepções, foi para casa, com uma ligeira sensação de náuseas. Não soube precisar se deveria ingerir os medicamentos do horário matinal. Observou que as lixeiras em frente das casas começavam a receber os sacos pretos de sempre, dessa vez, repletos dos sinais de exageros cometidos pelas pessoas nos feriados do final do ano.

A filha chegava do trabalho que habitualmente se encerrava às 18:00 h. Anunciou que a partir desse ano novo, com as mudanças nos horários não haveria mais os intervalos de almoço. O Comitê Internacional de Registro do Clima Tempo concluíra, após estudos exaustivos e comprovações científicas testadas, que a terra passara a dar a volta em torno de seu próprio eixo em 12 horas. A mudança vinha sendo gradativa e quase imperceptível pelas pessoas que viviam sem tempo para nada.

A mulher tomada pela estranhamento, preparava um chá de camomila cujo cheiro imprimia um clima de antiguidade pela casa.  

Enquanto jantava, a moça anunciou que o enteado de três anos de idade fora presenteado com um aparelho e que, a partir de então, não precisaria mais receber orientações dos pais ou de quem quer que fosse, a não ser do sistema.  As escolas seriam abolidas em breve, sendo mantidos, no entanto os berçários e creches.

Lá fora trabalhadores da companhia de saneamento enchiam às pressas o barulhento caminhão caçamba.  Carros e motos buzinavam na rua, como se isso fosse organizar o trânsito caótico da cidade. Havia mais pressa que nunca. No parque em frente, os corredores habituais praticavam seus exercícios físicos. Todos pareciam zumbis. O “admirável mundo novo” havia chegado.