A realidade precisa ser completada pela ficção para tornar a vida mais
fácil ...”. (Pedro Almodóvar, em O
último sonho. Cia das Letras, 2024. P. 93)
Na primeira hora 12 do dia, já era noite, naquele tempo tomado por
densa escuridão. A mulher se percebeu assustada, não apenas com o fenômeno, também
pela indiferença geral em volta.
Na rua como de hábito, a maior frequência de carros, devido à abertura
dos portões da escola, na via de cima.
Exalava-se o cheiro habitual de fritura, no restaurante próximo que cumpria
rotineiramente o horário de almoço, confirmado pelo intenso movimento de
pessoas saindo e entrando dos carros que disputavam ansiosos uma vaga.
Sem se importar com a escuridão, as flores da onze horas do canteiro
anexo à casa ostentavam plenas suas sedosas pétalas coloridas e brilhantes.
Chegando do trabalho suada, a filha lavou displicentemente as mãos e
sentou-se à mesa do almoço, no mesmo ritmo de outras épocas. De vez em quando interrompia
a refeição e dava olhadas no aparelho. Numa uma dessas, pousou os talheres à
mesa e, ao que parece, respondeu uma mensagem.
Curiosa porém contida com a indiferença da moça às mudanças do tempo, a
mulher levantou-se da mesa e recolheu com displicência as louças e talheres,
depositando-os na pia.
Do lado de fora, deu comida ao cachorro e renovou a água da vasilha.
Ainda cansada da rotina dos festivos dias anteriores, dirigiu-se ao
quarto e acendeu as luzes sem saber se deveria ingerir os medicamentos da
noite. Escovou os dentes e cumpriu o ritual das loções e dos cremes ante rugas.
Antes de deitar, deu uma olhada no aparelho, onde havia uma mensagem dessas
emitidas por dispositivos automáticos, confirmando seu horário de atendimento
com a doutora Diana, para as quatro da tarde.
Sentia-se muito confusa, mas precisando dormir. Disposta a cumprir seus compromissos, a mulher
programou o aparelho para acordá-la às 15: 00 h.
Não chegou a dormir profundamente, mas teve um pesadelo no qual
comparecia nua ao salão de cabelereiro, para pintar as unhas. A recepcionista,
os demais profissionais do estabelecimento, assim como os frequentadores
encontravam-se vestidos como de costume e não manifestaram estranheza diante de
sua nudez.
Levantou-se da cama, perdida no tempo, e se arrumou com pressa, saindo
de casa pela porta da garagem.
No consultório odontológico onde chegou à recepção esbaforida e confusa,
tudo parecia normal. O sorriso muito branco da assistente dava um bonito
contorno ao anúncio de que a doutora estava 15 minutos atrasada. O barulho inconfundível
do motor, vindo da sala de atendimento demonstrava que a dentista ainda cumpria
a rotina de tortura com o cliente do horário anterior. Há trinta anos ela era
paciente desse mesmo consultório. Endereço, equipamentos e assistentes mudaram.
No entanto, o motor ainda parecia o mesmo, emitindo o seu infernal ruído.
Não demorou a ser chamada. A visita ao consultório constou de um
pequeno procedimento de reconstituição de uma obturação que havia se trincado. Enquanto
era atendida, imóvel e de boca aberta, ficou se perguntando se antes era comum
que os dentistas trabalhassem com escuro.
Consultou o relógio que teimava em manter no pulso, ao sair para a rua.
Para quase todo mundo esse era um objeto estranho e fora de moda. Cinco horas e
o dia clareava. Desde o Natal a chuva não dera trégua e diferentemente dos dias
anteriores, o sol se ostentava no alto dos morros e no topo dos edifícios. Cheiro
de pão fresco saindo do forno exalava de algum estabelecimento fechado. Ônibus
passavam lotados e ela não soube precisar se as pessoas iam ou vinham do
trabalho.
Como se houvesse acabado de chegar em um país distante, cujo fuso
horário confundia as percepções, foi para casa, com uma ligeira sensação de
náuseas. Não soube precisar se deveria ingerir os medicamentos do horário
matinal. Observou que as lixeiras em frente das casas começavam a receber os
sacos pretos de sempre, dessa vez, repletos dos sinais de exageros cometidos
pelas pessoas nos feriados do final do ano.
A filha chegava do trabalho que habitualmente se encerrava às 18:00 h. Anunciou
que a partir desse ano novo, com as mudanças nos horários não haveria mais os
intervalos de almoço. O Comitê Internacional de Registro do Clima Tempo concluíra,
após estudos exaustivos e comprovações científicas testadas, que a terra
passara a dar a volta em torno de seu próprio eixo em 12 horas. A mudança vinha
sendo gradativa e quase imperceptível pelas pessoas que viviam sem tempo para
nada.
A mulher tomada pela estranhamento, preparava um chá de camomila cujo
cheiro imprimia um clima de antiguidade pela casa.
Enquanto jantava, a moça anunciou que o enteado de três anos de idade
fora presenteado com um aparelho e que, a partir de então, não precisaria mais
receber orientações dos pais ou de quem quer que fosse, a não ser do sistema. As escolas seriam abolidas em breve, sendo mantidos,
no entanto os berçários e creches.
Lá fora trabalhadores da companhia de saneamento enchiam às pressas o barulhento
caminhão caçamba. Carros e motos buzinavam
na rua, como se isso fosse organizar o trânsito caótico da cidade. Havia mais pressa
que nunca. No parque em frente, os corredores habituais praticavam seus exercícios
físicos. Todos pareciam zumbis. O “admirável mundo novo” havia chegado.