Negócios
Minha
avó tinha morrido; minha mãe caiu no mundo. De pai não sei. Meu avô me vendeu.
Por pouca coisa, suponho. Eu só servia para dar despesas. Era o que ele dizia.
Fui levada mocinha, quase uma menina. O homem rico, dono das lojas, falou que
eu ia ser esposa. Era sujeito de bem. Sei. Na real me tornei empregada durante
o dia. À noite, também cumpria o que me mandava. Esperta sou, eu acho. Nunca
duvidei que isso também estava no trato com meu avô. Somente poderia sobreviver se fosse boazinha, assim entendi. Comecei pedindo:
-
Posso ver televisão?
Fui
assistindo, fui aprendendo: como fala, como faz, como se transforma.
O
homem tem um filho da mãe que foi a esposa, a dona da riqueza original. Dizem. E
que fugiu com um estrangeiro. Menino mimado ficou. Fui vendo. Deu de se drogar
ainda muito moço. Falavam. Tem carro de luxo, negócios. Loja no seu nome.
Eu
no trabalho. Obedecendo e observando. O filho esbanja dinheiro, faz racha com
carro. Esnoba. Em pouco tempo ocorre um acidente fatal. O pai cai em desgraça.
Só tem a mim, ele diz. Quer ganhar minha confiança e talvez algum afeto, penso.
Quem não precisa?
Cartas
de cobrança e contas começam a chegar. Tudo negócios mal feitos do filho. Era o
que diziam.
O
pai primeiro pagou, ... foi pagando. Perdeu loja, caminhão. Vai ficar sem nada:
falavam. O homem foi entristecendo, foi-se amuando. Ficou entregue. Pediu meus documentos.
Me levou ao cartório. Pôs casa no meu nome. Recebi escrituras de terrenos. Posse de
veículos. Me falou do cofre. Mostrou o segredo. Muito dinheiro. Até em moeda
estrangeira.
Derrame
bateu no homem. AVC. Tratamentos: hospital, aparelhos, médicos, fisioterapia.
Pouco resultado.
Sou
acompanhante, enfermeira. Me torno senhora. Aprendo mais, pesquiso muito. Anoto
quando preciso. Agora tem a internet que ajuda muito. O homem mal fala. Vive na cama, ou
prostrado na cadeira. Contrato doméstica, cuidador. Levam pra sala. Levam pro
sol. Escuto, compreendo: os negócios dando água. Empregados indo à justiça. Vem
o banco. Vêm os fornecedores. Falam em penhora, confisco de bens.
Contrato
advogado, mostro posse do que é meu, documentos. O cofre não menciono.
O
homem não sai mais da cama. Pegou pneumonia. Contrato um fisioterapeuta, para tratamento
domiciliar. Tudo decido. Somente eu tenho
o segredo do cofre.
O
doente não reage, saúde piorando a cada momento.
Fisioterapeuta
é moço bonito. Tem que vir todo dia. Profissional dedicado, muito gentil.
Eu
o chamo de senhor. Ele diz:
-
Não precisa. Temos a mesma idade.
Em
sua resposta e em seu olhar, mais do que simpatia. Aprecio. Sorrio. Trinta anos
eu tenho e sou quase uma criança. Ensaio um passo de dança.
Arte em grafite, fotografada em um muro no Rio de Janeiro |
Como viajo com seus contos, Maria Ines do Carmo.
ResponderExcluirParece vida real, se bem que para muitas pessoas é real mesmo, infelizmente.
O bom que ela se livrou do velho.