No ano de 2021 a Secretaria de Cultura do município de Viçosa lançou um convite aos escritores aqui residentes para que contassem, por meio de contos, crônicas, ou poemas, as suas memórias afetivas com a cidade. Atendendo ao chamado, escrevi o conto Mãe Solteira, uma ficção criada a partir de muitas histórias vividas neste lugar que tanto aprecio. O livro já foi publicado, porém cada autor obteve apenas 10 exemplares, o que impediu que pudéssemos compartilhar com mais pessoas. Assim sendo, publico aqui, com alegria porque, mesmo tratando-se de ficção, foi muito inspirado em minhas vivências no trabalho. Com essa história faço um tributo a todas as mulheres guerreiras que, como eu, trabalham e criam seus filhos em um pais machista como o nosso.
O livrinho publicado em 2022 onde consta o meu conto |
Mãe Solteira
Aos outros parece uma fotografia
muito antiga... Nela, carrego a bandeira do município no desfile do
cinquentenário da cidade. Acho estranho que não me reconheçam. Para mim foi
ontem.
O que sinto e não
consigo dizer será sempre muito maior do que essas palavras que me deixam nua.
Confissões costumam ser dolorosas. Nunca disse, nem para o padre, mas resolvi declarar
agora, não sem muito desconforto, que cometi um crime.
Meu filho está por
fazer 50 anos. Parece que foi ontem que meu menino nasceu, menos de seis meses
depois dessa fotografia. Eu ingressara no ensino médio no colégio estadual
fundado naquele ano na cidade e, como a primeira da classe, fora convidada a carregar a
bandeira no desfile comemorativo. Morava em uma das vilas dos operários da Escola,
onde meu pai era trabalhador havia seis anos. Não dá para esquecer que ele carregou muito peso
para construir, quase sempre mal agasalhado, mal nutrido e de pés descalços, os
edifícios nos quais meu filho e eu pudemos estudar. Veio da comunidade rural Palmeira Pequenina, onde era lavrador e puxava
enxada desde que se entendia por gente. Mesmo que como servente fizesse massa,
carregasse pesos e empurrasse carrinhos de brita na construção da Escola, tinha
a oportunidade de dar estudo às filhas, desejo intenso do
sonhador incansável e otimista que era.
Sua mulher, miúda e
franzina, além de dona de casa e mãe de três filhas, cuidava da horta e das galinhas. Aqui fez o
curso de corte e costura: quem via a
família tão limpa e arrumadinha não conseguiria imaginar o empenho e a obstinação
daquela mulher que, em certa época, trabalhou
também como lavadeira de roupas de estudantes. Eram os tempos nos quais a Escola
atrasava o pagamento e, não fosse por minha mãe, teríamos passado privações,
maiores até do que aquelas das quais fugíamos. Na roça, chegava a comida a ser
pouca e agasalhos eram quase um luxo.
No centenário da cidade,
houve muitas festas, mas, para a mocinha dessa foto, nenhuma delas foi tão
marcante quanto a Semana do Fazendeiro. Era mais um dos corriqueiros encontros
entre uma “nativa” e um aluno da Escola. Foram momentos intensos e cheios da
ternura típica de jovens enamorados românticos e bem intencionados. Estudante
do terceiro ano de Agronomia, ele era do
sul de Minas, onde o pai, um sitiante recém iniciado na cultura do café,
decidiu enviar o filho para estudar na famosa Escola de Ciências Agrárias da
Zona da Mata mineira, mesmo com certa indisposição da esposa, mulher de origem
mais abastada, que desejava ver o filho médico ou juiz.
Minha avó paterna vinha
passar tempos conosco de vez em quando. Foi com ela que tomei gosto por contar
histórias, interessei-me particularmente pela lendas, como a da cobra grande e
a do bicho folhaça. Eram relatos de povo Puri e, provavelmente, também de
alguma ancestralidade africana. Na vila, sempre que vinha, benzia-nos, os familiares, e os que a
procuravam. “Que cozo? Carne torcida, nervo moído, osso esconjuntado”, repetia
enquanto atravessava a agulha no novelo de
retalhos usado para mandar às fiandeiras que teciam os cobertores da família. Acompanhando-a
ainda menina, cortei esse campus da
Escola à procura de plantas para chás, unguentos e outras práticas. Subi
inúmeras vezes o Alto dos Barbados, onde víamos quase sempre na encruzilhada
trabalhos de umbanda: as velas vermelhas, o litro reluzente de cachaça e o agdá
de barro com a farofa. Em sua companhia, fui algumas vezes a pé, fazendo um
trajeto de duas léguas até a roça onde vivia com seu outro filho que se
recusava a mudar para a cidade. Talvez por isso eles dois tenham sido os mais
longevos da família. Diferentemente do meu pai, que mal passou dos 60 e se foi
com menos anos do que tenho hoje. Era um velho com pouca idade. Tinha
o corpo estragado por uma vida inteira de friagem nos pés e fumaça de cigarros
nos pulmões. Ele os tragava desse os 14 e se recusava a deixá-los por mais que
fosse alertado sobre o risco. “A gente tem que ter algum aliviozinho, minha
filha,” dizia. A vida dura não o fez triste. Nunca abriu mão de
suas pequenas alegrias. Adorava um forró
e, nos pequenos espaços que o excesso de trabalho lhe permitia, juntava-se a
amigos nas rodas de capoeira. Depois que, por questões de saúde, deixou o
trabalho nas obras e foi enquadrado como auxiliar operacional agropecuário, até
aos domingos, ia prender os bezerros e alimentar os outros animais do estábulo,
onde foi lotado nos últimos anos de labor, quando já não aguentava mais
carregar sacos de cimento nas costas ou empurrar carrinhos de brita.
Depois que ele se foi
e, em seguida, também minha irmã caçula, com pouco mais de 50, ficamos somente minha
mãe e eu, porque vimos a do meio morrer
com apenas 16 anos, vítima de um aborto clandestino. O sofrimento e a dor de
toda a família ficaram eternizados. Foi também o medo que permitiu que meu
filho nascesse apenas dois anos depois desse marcante episódio. Minha mãe, após a morte do meu pai, viveu
comigo até oito anos atrás, quando adquiri essa condição dolorida da orfandade
plena.
Meu filho, que do pai
tem apenas o nome na certidão de nascimento, mudou-se daqui quando tinha 25
anos; foi portando títulos de graduação
em Engenharia de Alimentos e de mestrado na mesma área. Ingressou em uma
multinacional e vive infeliz no seu mundo de concreto e conforto. Paga alto o preço
por receber salário em moeda europeia e ter
seus filhos estudando em escolas bilíngues.
Fiz de tudo para que ele sofresse o mínimo possível com a condição de
filho de mãe solteira; me desdobrei o quanto pude, para que, diferentemente de
mim, não lhe faltassem bons agasalhos, muito menos o pão com manteiga no café
da manhã de todos os dias.
O menino foi fruto de
uma história bonita e muito curta, iniciada na Semana do Fazendeiro no ano do
desfile em que apareço na foto. Posso estar repetindo algumas partes desse
relato e fugindo ao que me estimulou a iniciá-lo: o crime que cometi, no ano em
que ele nasceu e que considero o mais decisivo da minha vida.
Quando fiz 16 anos, meu
pai me matriculou no curso de datilografia. Seis meses depois, tornei-me uma das poucas alunas que davam 180
toques por minuto e a própria professora indicou-me para ajudante no cartório
de registro civil. Era na informalidade, sem direitos trabalhistas, mas o
salarinho pingava regularmente todo fim de mês. Além de me tornar autônoma, foi
providencial a ajuda que passei a dar em casa. Durou pouco mais de um ano e
meio, até que me ingressei na Escola, em cujo processo seletivo os 180 toques
foram o diferencial. Eram os 70 do século passado e a Escola crescia; passei no
vestibular e iniciei o curso superior. Foi um ano de muitas mudanças. Não fora
a vida pelejada desde a infância, provavelmente, eu não daria conta de trabalhar e estudar com
um bebê recém-nascido. Eu tinha 18 anos
e não havia tempo para pensar na fraude que cometera.
Durante 40 anos, até me
aposentar, há menos de uma década, trabalhei na Escola. Quando terminei a
graduação, deixei de ser datilógrafa; passei a cuidar da assistência social,
tarefa para a qual não tinha formação plena, apenas uma ligeira aproximação com
o curso que fiz. Mesmo que muitas vezes tenha sido chamada ironicamente de “pica-couve”,
creio que meu desempenho orgulhou meu pai e minha mãe. Ali entendi que essa que
dizem ser uma das mais bonitas e eficazes instituições de ensino do país foi
feita, mais com o esforço e sacrifício de pessoas como as da minha família, do
que com o conhecimento e a tecnologia
vindos de Purdue.
Agora somos poucos: meu
filho que mora fora e a gente dele e, aqui, duas sobrinhas, meninas da minha
amada irmã mais nova. Quando meu filho nasceu ela, uma mocinha de 14 anos,
assumiu os cuidados com o bebê, para que eu e minha mãe pudéssemos continuar trabalhando
fora de casa. Casou-se mais tarde e teve
as filhas depois dos 30. Morreu precocemente aos 50, deixando as meninas. Apesar de casada, criou-as sozinha, por
motivos que aqui não precisam ser explicados; são tão comuns a tantas mulheres,
que podem ser facilmente deduzidos.
Lembro ao meu filho que
a vida que leva hoje foi possibilitada com os penares de seus avós e de sua
mãe, permitam-me dizer. Não foram poucos perrengues. Jamais mencionei os
assédios dos quais fui vítimas no trabalho e na vida, ou falei das injustiças
frequentes. Perdi a conta dos
documentos, relatórios e projetos que elaborei e redigi para que meus
chefes homens assinassem; entendiam como minha obrigação, enquanto mulher,
sedimentar caminhos e concretizar maneiras de alcançarem cargos mais altos, posições raramente ocupadas por nós. Se for tomar ao pé da
letra, como hoje muitos episódios das relações de trabalho são entendidos,
posso reafirmar que, não raras vezes, sofri assédio moral e sexual no trabalho.
Carregando o rótulo de mãe-solteira, tais situações eram vista quase com
naturalidade.
Minha neta mais velha reclama
comigo da incipiente presença do pai, divorciado
da primeira família. Relata dúvidas tão comuns nessa delicada fase dos 20 anos;
dúvidas que não pude sentir quando eu tinha a idade dela. Insegura quanto às escolhas profissionais, deixou a universidade, depois de dois anos em
um curso que escolheu pressionada pela família. Gosto de saber que posso dar a
ela conselhos e opiniões que não recebi. Diferentemente do que desejam os outros
avós e a mãe, que queriam mandá-la viver fora do país, ela cogita vir estudar
aqui. Penso que pode lhe fazer bem distanciar da vida numa cidade tão grande,
condição que me apavora bastante. Caso venha, vou lhe contar muitas histórias,
inclusive a da minha fraude. Gostaria que me acompanhasse nas caminhadas por esse campus tão bonito e que fosse comigo à
procissão de Santa Rita. Seria ótimo levá-la para dançar forró, na Semana do
Fazendeiro.
Sou uma mulher de sorte,
não somente porque jamais fui denunciada pelo meu crime. Vivo em uma bom lugar
e tive muitas oportunidades de aprender. Fui criada dentro de uma Escola que é
quase um jardim. Ainda assim, às vezes fico
sorumbática e mal humorada. Não creio
que isso tenha relação com o ilícito que cometi na juventude. Com a
idade, os receios mudam. Mantenho, porém, um esforço constante para que permaneça
em mim, a crença de que gente é bicho que presta!
Não sei porque o pai do
menino jamais voltou para o nosso
casamento, como havíamos combinado e isso não mais importa. Agora ele encontrou-me na internet e quer me rever,
diz que está viúvo e tem dois filho. Quantos?
Será que conta com o meu? Não sei se devo falar que o nome dele está na
certidão de nascimento do menino, onde consta como declarante: o próprio pai.
Há quase cinquenta anos, ele foi de férias. Sabendo que eu carregava um filho no ventre, nunca mais voltou nem deu notícias.
Nem sei se compensa contar meu crime. Tenho
uma enorme preguiça dessa história. Ele vai se lembrar que eu trabalhava no
cartório de registro civil? Minha
angústia de hoje, não é mais pensar nessas
miudezas, o que mais incomoda é esse não saber constante.
Amei!!!!!
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