“Todas as encruzilhadas – mas somente à meia noite; todos os caminhos
na quaresma – com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, ....” (Guimarães Rosa
em: Sagarana, P. 202)
Se você não é pessoa
corajosa o bastante, melhor não andar por Minas no período da Quaresma.
Nessa época, por aqui, correm soltos e costumam aparecer para os desavisados, entes
esquisitos, como fantasmas, espectros e assombrações. Há lugar para tudo e mais alguma coisa que a imaginação
popular cria, reconta e preserva de geração em geração.
Em minha bucólica
infância rural, ninguém precisava dizer às crianças que tempo era. A chegada da
Quaresma anunciava-se pelo florescer das árvores roxas que salpicavam a mata,
pontuando de tristeza a capoeira verde e de receio o coração medroso da meninada.
Era a época em que os santos ficavam cobertos com panos roxos, nas igrejas e nas
casas. Lá fora o perigo rondava, especialmente à noite: a mula sem cabeça
andava desembestada, aparecendo para qualquer um, e o lobisomem surgia com mais frequência e não
apenas nas encruzilhadas, ou nas noites
de lua cheia, como no resto do ano.
Era o tempo de
recolher mais cedo. Quem estivesse nas estradas e não quisesse ser surpreendido,
cuidava de apressar a marcha, assim que
entardecia.
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Foto: Rosilene Salomé (Em Sítio Sonho Meu) |
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Foto: Rosilene Salomé |
Nas velhas fazendas
abandonadas, quase sempre mal assombradas, ocorriam diversas aparições, desde o
fantasma da menina morta de tanto apanhar do padrasto, até a moça de branco com
algodão no nariz a rogar que lhe tirassem o incômodo que a impedia de respirar.
Essa era a que dava mais medo, porque diziam que caso alguém a encontrasse deveria atender
o seu pedido. E quem ia ter coragem, estando provavelmente com as pernas
bambas, as mãos trêmulas e as calças mijadas?
Em praticamente
todas as regiões de Minas, nesse período, ainda hoje, ouvem-se relatos
incríveis de fantasmas e assombrações. São portas que batem mesmo na total
ausência de vento, móveis que rangem e se arrastam sem o toque de ninguém.
Na tentativa de
acalmar essas horripilantes criaturas, à noite vinham os homens para encomendar
as almas. Chegavam na surdina e se apossavam do terreiro. Ao som das matracas, apenas sussurravam uma cantiga triste.
Dentro da casa, silêncio absoluto – era a ordem dos mais velhos e ninguém
desobedecia. Às vezes o estalar da madeira do assoalho, ou barulhos inexplicáveis
vindos do forro de taquara, aumentavam ainda mais o pavor das crianças, cuja
único consolo era embolar-se na cama dos pais.
Na cidade, o perigo
não era menor. Pontualmente à meia noite, a égua de três patas passava mancando pelo calçamento irregular da rua Direita. O cavaleiro,
ninguém sabia quem era. Uns diziam que o animal, embora arreado, andava sem
condutor. Quando ousávamos espiar pela fresta da janela, víamos as faíscas de fogo brotadas do bater das ferraduras nas pedras do calçamento irregular. As ruas mal iluminadas e a rapidez com que o bicho passava nunca permitiram que
identificássemos a figura que o montava, em sua indumentária preta: - Uma
batina, ou uma capa?
Além dessas, muitas
outras histórias povoam o imaginário popular de nossa Minas Gerais. É
comum que em regiões diferentes, elas assumam contornos variados. Aqui onde
vivo, a Mula Sem Cabeça é o fantasma de uma moça linda e prendada que se apaixonou
pelo padre. Já o Lobisomem é, pelo menos nas histórias que eu ouvia, o
espectro de um filho cruel que batia na própria mãe.
Se você está achando
que esses casos são apenas crendices e superstições, digo-lhe com a autoridade de quem viveu a infância na roça:
- Que mané
superstição, que nada! Isso é a mais pura verdade! E não lhes contei nem a
metade.
Como bem disse
Guimarães Rosa: “Graças a Deus, tudo é mistério” *
E...Essa história entrou por uma porta e saiu por outra. Quem quiser que conte outra.
*Guimarães Rosa, In: Carta de Guimarães Rosa a João Condé, revelando
segredos de Sagarana. Prefácio. São Paulo: Ed. Record, 1984.
Que delícia lembrar essas histórias! Muito Minas Gerais!
ResponderExcluirAdorei, Maria Inês!!! Viajei mundos e fundos pra acompanhar, arrepiada, cada passo dessa história, que é a nossa história!
ResponderExcluirE ai vai mais uma, vivida pelo meu pai, seu tio Chiquito, que, a cada quaresma, fazia questão de repetir essa história. Assim ele contava:
_ Ia eu no meu cavalo baio, alta madrugada, quando, de longe, numa noite de lua quase cheia,
quando acabei de virar uma curva, que dava para um brejão cheio de “Maria sem vergonha”, que avistei, de longe a dita porteira. Ah! mas antes de chegar mais perto, veio aproximando um cavaleiro, ainda miudinho, não sei se pela distância ou pelo medo. Arrepiei todo, mas como o cavalo nada sentiu, continuei... O batido dos cavalos, do meu batendo mais ligeiro e fazendo mais barulho, e do dele, chegando surdo nos meus ouvidos, anunciavam o que podia vir. Foi dito e feito. Mal o camarada chegou mais perto de mim, gritou esprimidinho: “vorta cumpanheiro, purque da porteira ocê num passa não!!!” Meu cavalo deu um tranco. Meu coração disparou. Era quaresma! Esperei ele chegar mais perto e pude ver e mais que isso, sentir, que ele se borrou todo! Falei pra mim mesmo: diabos! Mais essa... Pelo que pude entender da fala dele, havia na porteira um bicho muito doido que agarrou os cabelos dele antes de abrir a porteira... Na disparada, seu cavalo achou o caminho de volta. Ele se foi e eu voltei a pensar: diabos... tenho que chegar em casa e não tem outro caminho. Se pedir pousada por aqui, amanhã, quando chegar em casa, não vão acreditar na minha história... e a coisa não vai ficar boa pra mim. Tenho que ir. Esporei o cavalo e saí num galope só. E foi ficando perto da porteira.... e mais perto... O arrepio subiu dos pés pra cabeça... o chapéu tremeu...Agarrei na porteira , chegando o cavalo de lado, no freio e na espora. Não sei o que gritava mais alto, o relincho do cavalo ou a batida do meu coração... De repente, quando a porteira abriu e fui passando senti que fiquei sem meu chapéu... Ave Maria! Senhor bom Jesus! Era o bicho! Não tinha como duvidar! Foi quando, olhando pro céu para pedir ajuda ,vi meu chapéu agarrado num cipó seco pendurado na árvore que beirava o caminho! Que alívio!!! Assombração que nada! Pura superstição!!! Mas o melhor foi no outro dia; não contei nada pra ninguém, até que começaram surgir os boatos da assombração da porteira.
Assistam!
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=gL9LH5bjJMA&list=PLF041677482DF00AB
Cando vaI ser a quaresma
ResponderExcluirNão consigo nem imaginar como eram esses medos! Deviam ser mesmo paralisantes!
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