sexta-feira, 30 de junho de 2023

Ler e Escrever

Entre as leituras recentes que me impactaram muito, destaco três livros que precisam ser lidos para entender quem somos e onde andamos. Um povo miscigenado que se formou a partir dos habitantes originários de nossa terra que foi invadida por europeus. Esses não achando suficiente escravizar e explorar os que aqui já viviam, importaram em larga escala, cativos do continente africano. Dessa mistura somos formados, constituídos dessas combinações genéticas e culturais em um amálgama tão bem fundida que fica difícil identificar entre nós quem não carregue tais misturas.

 É uma alegria ler simultaneamente três escritores brasileiros que nos oferecem não apenas literatura de boa qualidade, mas também uma ficção com a qual podemos nos identificar.

A arte e especialmente a literatura têm esse poder de consolidar a identidade e melhorar a autoestima de um povo. Ao nos sentir representados, quando deparamos  com personagens e temas que conversam conosco, que deixam aflorar nossas raízes e nossa ancestralidade, nos fortalecemos como povo e como nação.

 

O Som do rugido da onça – De Micheliny Verusnchk. Companhia das Letras

 

Josefa é uma mulher dos nossos tempos, vivendo em uma cidade grande e que ”segue operando estratégias de apagamento da própria identidade” (p. 88), incapaz de  perceber a força e a presença de suas origens. Em visita a uma exposição de artes ela se depara com uma história que a instiga a pensar em sua ancestralidade. A mostra contem desenhos que relatam a história real de duas crianças indígenas levadas à Alemanha por cientistas, juntamente com animais e plantas brasileiras.

A partir dessa história ocorrida há cerca de três séculos, a autora esmiúça o  destino das crianças nativas, submetidas à   crueldade da separação de sua família, de seu povo, de sua terra e de sua cultura, levando-as à implacável solidão e ao isolamento, até a morte prematura.

Iñe-e e Caracara-í eram filhos de povos distintos e inimigos, não falavam a mesma língua, sendo, portanto submetidos ao mutismo em um país de clima frio e onde eram vistos como parte da fauna brasileira, juntamente com outras espécies exóticas.

Lá tiveram suas identidades plenamente anuladas, inclusive sendo batizadas com nomes europeus.

Caracara-í, o menino, é também Juri, assim como o seu povo. A menina,  Iñe-e, é a personagem principal que, quando criança, tem um encontro com a Onça Grande, Tipai uu e cujas vidas foram fortemente entrelaçadas.

A busca de Josefa por resgatar, compreender e vivenciar a saga das crianças constitui o enredo dessa história envolvente e estarrecedora.

 




Salvar o fogo – De Itamar Vieira Junior. Editora Todavia

 Em uma comunidade de povos afro indígenas  na Tapera do Paraguaçu,  vivem Luzia, o irmão Moisés e o pai Mundinho. Sob o domínio da Igreja católica, que mantém ali um mosteiro construído há séculos, a vida da comunidade é marcada pela luta pela sobrevivência e pela defesa dos pequenos pedaços de chão em que vivem as famílias que buscam garantir na terra e no rio  a pelejada sobrevivência.

Luzia carrega, além de uma corcunda, dores, que há séculos, torturam sua comunidade. Como lavadeira de roupas do mosteiro, ela encontra no trabalho alguma possibilidade de defesa contra uma comunidade que lhe atribui poderes sobrenaturais. A religião tenta se impor aos costumes e crenças consolidadas pelos habitantes do lugar.  Moisés, o irmão caçula, é o temporão da família. Há outros filhos desterrados do local, espalhados por diferentes lugares. O menino recebe, no mosteiro, uma educação tradicional e encontra nos livros um consolo diante da brutalidade da vida na comunidade. Adolescente, foge do lugar, afastando-se da família, de sua história e das próprias origens.

O desenrolar do relato nos leva a um tempo e a um estilo de vida que são praticamente apagados de nossa história, mas que persistem muito nítidos em nossa ancestralidade e em nosso inconsciente coletivo.

Já se disse que a história é a história dos vencedores. Nesse romance os vencidos ganharam voz. Nas palavras do autor em entrevista recente: “Me interessa dar protagonismo a personagens que fizeram parte de minha própria história, escrever aquilo que ainda não foi escrito: a história daqueles que não puderam escrever as suas histórias”

 

A vida não é útil – De Ailton Krenak. Companhia das Letras

 

Ailton Krenak, jornalista, filósofo, ativista e líder indígena é um pensador extremamente necessário em nossos tempos. Nesse livro ele nos alerta  que estamos deixando ser tomados pelo consumismo desenfreado, pelo individualismo e pela pressa, e sendo convencidos de que a realização pessoal pode ser alcançada por meio da produção e do consumo. Veementemente argumenta que, dessa maneira, vamos destruindo a vida no planeta, colocando, obviamente a nossa própria sobrevivência em risco. Além disso instiga-nos a refletir sobre “ quanto tempo nos dedicamos a desfrutar o privilégio de estar vivos”. Ao mesmo tempo, registra o equívoco contido na cultura que praticamente impede a concepção de estilos de vida que não coloquem o trabalho como principal razão da existência.

Lembra o escritor que a recente pandemia de Covid-19 nos fez perceber que é possível sobreviver com menos produção e menos correria. Propõe também que direcionemos o olhar  para a sabedoria de  culturas de povos originários que não apenas vivem na natureza, mas que “vivem a natureza” e enxergam a vida como parte inerente da Terra, como uma planta, um animal ou uma montanha, todos filhos da grande mãe que sustenta tudo  que respira.

 

 

Diante de tantas boas leituras sou levada a me perguntar :  por que gosto tanto de ler e principalmente, por que escrevo?

- Porque por intermédio da leitura e também da minha escrita, me elevo a um patamar que não alcanço sem elas. Com a minha arte me torno maior do que sou. Ela transcende de mim feito flor que desabrocha de um botão imperceptível. Porque sou miúda e frágil, sombria e pobre, medrosa e impotente e ela me torna quase destemida, deixando brotar milagrosamente uma potência que desconheço. Porque preciso me sentir humana, mesmo que a escrita me ponha pelo avesso, mostrando o disparates da minhas entranhas. Pela alegria de ter momentos em que espanto o bicho renitente que habita em mim e me faz acordar,  dia após dia, amedrontada e confusa.

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