Dizem
que hoje é o dia da saudade. Que coisa, né?, tem dia pra tudo. Embora eu não
consiga imaginar o que, penso que isso deve ter sido instituído para vender
alguma coisa.
Mas
com o blog com esse nome, passei o dia matutando sobre o que escrever e fiquei
fazendo reminiscências sobre o que me traz muita saudade. Não, não é da infância,
nem de pessoas queridas que já se foram, ou de um grande amor que guardo a
minha maior saudade, mas de textos e livros que li há muito tempo e que lia com
outros olhos. Textos que hoje considero
banais, ás vezes até mesmo bregas, mas que, da primeira vez que os li me
deixaram tão encantadas que nunca pude esquecê-los o que me provoca uma enorme
saudade. Nem sei se a saudade será dos textos ou de mim, daquela pessoa mais
crédula, muito mais romântica e simples, que nunca mais serei. Acho que é disso sim, que sinto essa enorme saudade. Os textos são os meios de chegar, mesmo que momentaneamente,
a essa pessoa que fui e da qual certamente guardo significativos resquícios.
Embora
ainda goste muito da poesia da Cecília Meirelles, é dela, um dos textos a que
me refiro, que já me encantou muito, mas
que hoje me desperta grande saudade.
A
Arte de Ser Feliz (Cecília Meirelles)
...
“Houve
um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta
mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava
quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias.
Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a
entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças
tinham tal expressão no rosto e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis,
que participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me
sentia completamente feliz.
Houve
um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita
de giz. Perto da janela havia um jardim quase seco. Era numa época de estiagem da
terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre
homem com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água
sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para
que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas para o homem, para as
gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente
feliz.
Às
vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro
nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam o
muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas
brancas, duas a duas, como refletidas no espelho no ar. Marimbondos que sempre
me parecem personagens de Lope de Veja. Ás vezes, um galo canta. Ás vezes, um
avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. Eu me sinto
completamente feliz. Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que
estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que
só existem diante das minhas janelas, e outros finalmente que é preciso
aprender a olhar, para poder vê-las assim”.
Estrato do texto A Arte de
Ser Feliz. Disponível em: http://demogidascruzes.edunet.sp.gov.br/LP/Aart.pdf
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