Entre as leituras recentes que me impactaram muito, destaco três livros que precisam ser lidos para entender quem somos e onde andamos. Um povo miscigenado que se formou a partir dos habitantes originários de nossa terra que foi invadida por europeus. Esses não achando suficiente escravizar e explorar os que aqui já viviam, importaram em larga escala, cativos do continente africano. Dessa mistura somos formados, constituídos dessas combinações genéticas e culturais em um amálgama tão bem fundida que fica difícil identificar entre nós quem não carregue tais misturas.
É
uma alegria ler simultaneamente três escritores brasileiros que nos oferecem
não apenas literatura de boa qualidade, mas também uma ficção
com a qual podemos nos identificar.
A arte e especialmente a literatura têm
esse poder de consolidar a identidade e melhorar a autoestima de um povo. Ao
nos sentir representados, quando deparamos com personagens e temas que conversam conosco,
que deixam aflorar nossas raízes e nossa ancestralidade, nos fortalecemos como
povo e como nação.
O Som do rugido da onça – De Micheliny
Verusnchk. Companhia das Letras
Josefa é uma mulher dos nossos tempos, vivendo em uma cidade grande e que ”segue operando estratégias de apagamento da própria identidade” (p. 88), incapaz de perceber a força e a presença de suas origens. Em visita a uma exposição de artes ela se depara com uma história que a instiga a pensar em sua ancestralidade. A mostra contem desenhos que relatam a história real de duas crianças indígenas levadas à Alemanha por cientistas, juntamente com animais e plantas brasileiras.
A partir dessa história ocorrida há cerca de três
séculos, a autora esmiúça o destino das crianças nativas, submetidas à crueldade da separação de sua família, de seu
povo, de sua terra e de sua cultura, levando-as à implacável solidão e ao isolamento,
até a morte prematura.
Iñe-e e Caracara-í eram filhos de povos distintos e
inimigos, não falavam a mesma língua, sendo, portanto submetidos ao mutismo em
um país de clima frio e onde eram vistos como parte da fauna brasileira,
juntamente com outras espécies exóticas.
Lá tiveram suas identidades plenamente anuladas,
inclusive sendo batizadas com nomes europeus.
Caracara-í, o menino, é também Juri, assim como o seu
povo. A menina, Iñe-e, é a personagem
principal que, quando criança, tem um encontro com a Onça Grande, Tipai uu e
cujas vidas foram fortemente entrelaçadas.
A busca de Josefa por resgatar, compreender e
vivenciar a saga das crianças constitui o enredo dessa história envolvente e estarrecedora.
Salvar o fogo – De Itamar Vieira Junior.
Editora Todavia
Luzia carrega, além de
uma corcunda, dores, que há séculos, torturam sua comunidade. Como lavadeira de roupas do
mosteiro, ela encontra no trabalho alguma possibilidade de defesa contra uma
comunidade que lhe atribui poderes sobrenaturais. A religião tenta se impor aos
costumes e crenças consolidadas pelos habitantes do lugar. Moisés, o irmão caçula, é o temporão da
família. Há outros filhos desterrados do local, espalhados por diferentes
lugares. O menino recebe, no mosteiro, uma
educação tradicional e encontra nos livros um consolo diante da brutalidade da
vida na comunidade. Adolescente, foge do lugar, afastando-se da família, de sua
história e das próprias origens.
O desenrolar do relato nos leva a um
tempo e a um estilo de vida que são praticamente apagados de nossa história, mas
que persistem muito nítidos em nossa ancestralidade e em nosso inconsciente coletivo.
Já se disse que a história é a
história dos vencedores. Nesse romance os vencidos ganharam voz. Nas palavras
do autor em entrevista recente: “Me interessa dar protagonismo a
personagens que fizeram parte de minha própria história, escrever aquilo que
ainda não foi escrito: a história daqueles que não puderam escrever as suas
histórias”.
A
vida não é útil – De Ailton Krenak. Companhia das Letras
Ailton Krenak, jornalista,
filósofo, ativista e líder indígena é um pensador extremamente necessário em
nossos tempos. Nesse livro ele nos alerta que estamos deixando ser tomados pelo consumismo desenfreado, pelo individualismo e
pela pressa, e sendo convencidos de que a
realização pessoal pode ser alcançada por meio da produção e do consumo. Veementemente argumenta que, dessa maneira, vamos destruindo a vida no planeta, colocando,
obviamente a nossa própria sobrevivência em risco. Além disso instiga-nos a
refletir sobre “ quanto tempo nos
dedicamos a desfrutar o privilégio de estar vivos”. Ao mesmo tempo,
registra o equívoco contido na cultura que
praticamente impede a concepção de estilos de vida que não coloquem o trabalho
como principal razão da existência.
Lembra o escritor que
a recente pandemia de Covid-19 nos fez perceber que é possível sobreviver com
menos produção e menos correria. Propõe também que direcionemos o olhar para a sabedoria de culturas de povos originários que não apenas
vivem na natureza, mas que “vivem a natureza” e enxergam a vida como parte
inerente da Terra, como uma planta, um animal ou uma montanha, todos filhos da
grande mãe que sustenta tudo que
respira.
Diante de tantas boas leituras sou levada a me perguntar : por que gosto tanto de ler e principalmente, por
que escrevo?
-
Porque por intermédio da leitura e também da minha escrita, me elevo a um
patamar que não alcanço sem elas. Com a minha arte me torno maior do que sou.
Ela transcende de mim feito flor que desabrocha de um botão imperceptível.
Porque sou miúda e frágil, sombria e pobre, medrosa e impotente e ela me torna
quase destemida, deixando brotar milagrosamente uma potência que desconheço. Porque
preciso me sentir humana, mesmo que a escrita me ponha pelo avesso, mostrando o
disparates da minhas entranhas. Pela alegria de ter momentos em que espanto o
bicho renitente que habita em mim e me faz acordar, dia após dia, amedrontada e confusa.