Gente que sonha com amenidades e singelezas nesse mundo cheio de despropósitos costuma não se cansar nem desanimar facilmente. Adotar as lições de Epicuro e agir “à procura de prazeres moderados”, tendo um jardim como campo de referência para reflexão e relaxamento, acaba sendo algo alentador.
Acerolas |
O filósofo grego que viveu por volta de 300 anos antes de Cristo falava da possibilidade de “atingir um estado de tranquilidade, libertação do medo e ausência de perturbação e sofrimento”. Seu ideal era manter a saúde do corpo e a serenidade do espírito. Diferentemente da academia, ou do liceu idealizados pelos filósofos mais conhecidos da antiguidade, a escola por ele fundada ficou conhecida como “o jardim”, uma comunidade de amigos e seguidores. Esses acabaram sendo os responsáveis pela divulgação de suas ideias, pois seus mais de 300 escritos não sobreviveram, deles restando apenas fragmentos.
Urucum planta nativa |
Sendo o ideal epicurista coisa grande demais para ansiosos crônicos como eu, fico e foco (como está na moda dizer) nas pequenezas e nos prazeres sutis que um jardim pode oferecer.
Diferentemente de quando me mudei para a casa onde moro, agora,
seja em dias lindos de céu azul, ou de chuvarada como tem sido nos últimos
meses, olho pelas janelas e vejo uma área verde cada dia mais exuberante.
Resultado de uma peleja de cerca de 20 anos.
A APA (Área de Preservação Ambiental) que perpassa
praticamente todo o bairro, é um terreno irregular, acidentado mesmo, e que
vivia coberto de mato. Era, e continua sendo comum, descartarem lixos e restos
no local. Tentar cuidar da área e
povoá-la com plantas me sujeita a tombos e escorregões. Além disso, vivo sendo
atacada por insetos, como aranhas, lagartas e marimbondos, que, além das danadas
das formigas, povoam abundantemente o lugar.
Comecei com quaresmeiras, ipês e fedegosos, plantas nativas e típicas da região. Introduzi amoreiras, pitangueiras e ingás. Esses últimos não se adaptaram. Hoje perdi a conta do que já plantei. Calculo que mais da metade foi perdido. Muitos foram levados ou destruídos por passantes, alguns não resistiram a secas e ao ataque de formigas e outros foram danificados por cavalos que costumavam ser soltos no local.
Espinheira santa |
Como Rubem Alves, sonho com um jardim. E faço amor com a terra praticamente todos os dias. Em casa separamos obstinadamente material orgânico como cascas de ovos, de frutas e de legumes, pó de café e outros que podem melhorar a qualidade do terreno. Planto, podo, adubo, limpo, praticamente todos os dias. Ando sempre pensando em outras plantas que vou inserir, em como as que estão lá ficarão quando se desenvolverem plenamente, ou quais serão danificadas ou perdidas. Um jardim serve também para isso: para que aceitemos a nossa falta de controle sobre a maior parte do que nos acontece.
Para uma procrastinadora como sou, um jardim torna-se também fonte de prazer, porque nunca está pronto. Diferentemente de um texto, ou de um bordado que exigem o famigerado ponto final, ele sempre estará lá, aberto a outras possibilidades, disponível para receber novas intervenções.
Dálias: memória afetiva |
Por fim, o jardim do bosque abandonado me oferece espaço
para a liberdade. Algo que, por vaidade, não consigo exercitar com os canteiros
da minha casa, pois me deixo seduzir por regras e conceitos do paisagismo que
me levam a atentar para que as plantas combinem entre si e estejam dispostas da
forma mais esteticamente recomendada. Lá não: vou plantando, conforme me dá na
telha, inspirada em jardins que povoam minha infância e inserindo espécies que fazem
parte de memórias afetivas importantes.
Brio de estudante jardins da minha infância |
Cuidar do jardim me torna uma pessoa menos atormentada, ajuda a aplacar minhas angústias. Todavia, não me concede a serenidade e a placidez propostas por Epicuro. Continuo cada vez mais intrigada sobre o que tem levado as pessoas a abandonar a vida simples e natural e ficar por aí idealizando e articulando guerras e conflitos.
Nativas gostam do lugar |
Tucanos são visitas muito esperadas |
Belíssimo seu texto, amiga, e tão verdadeiro, pois, nos dias atuais, a singeleza é que nos torna humanos, num mundo em que o poder aquisitivo compra quase tudo, menos a nossa paz interior, e é nosso contato com a mãe-naturez que nos renova e nos fortalece, para enfrentarmos a dureza e a insensibilidade dos dias atuais. Parabéns pela sua iniciativa, todos nós deveríamos segui-la!
ResponderExcluirSão também exercício de desapego e desprendimento: quantas vezes pelejei com alguma danada (por exemplo as marantas) que não se adaptou de jeito nenhum aos mais diversos cantos de casa e um dia simplesmente entendi que tinha que as deixar ir! Lindo texto e reflexão, tia!
ResponderExcluirAmei, tia!
ResponderExcluirMenina quanta cumplicidade nesse jardim. Senti simplesmente o perfume exalando de cada cantinho do seu jardim.
ResponderExcluirAmei a expressão: faço amor com a terra.
Me choquei com tanta expressividade.