No meio desse caos todo em que estamos vivendo, mesmo sem ser adepta da síndrome
de Poliana, consigo ver duas coisas boas acontecendo: A primeira delas, apesar
de boa, é muito triste. Trata-se de um doloroso processo que acredito esteja
afetando muitos de nós. Descobrimos que tínhamos amigos que não apenas votaram
em um sujeito declaradamente machista, violento, preconceituoso e fascista;
alguns continuam ainda, defendendo suas ações e omissões criminosas. Percebemos
pessoas que pensávamos esclarecidas, cultuando Olavo de Carvalho, o filósofo de
araque que orienta as ações de membros do governo e acredita que a terra é
plana. Deparamos com médicos em quem confiávamos, adotando posturas
negacionistas, debochando das medidas de distanciamento social e desprezando o
uso de máscaras e outros cuidados capazes de minimizar os efeitos devastadores
do corona. E também pessoas que acreditávamos possuir certa nobreza de caráter,
vemo-las defendendo o extermínio de pobres e negros e outros grupos vulneráveis.
Até gente que dizia ser contra a corrupção costuma encorajar-se a justificar
ações declaradamente corruptas e negando a ética que pareciam defender.
A
segunda, essa sim boa e alegre, é que parece que estamos todos lendo mais. Como
não comemorar isso, mesmo no meio de tanta dor e desolação? Vira e mexe falo
aqui no blog sobre livros. É uma paixão antiga que, nesses tempos, anda mais
acesa do que nunca.
Das experiências literárias dessa quarentena poderia falar
por muito tempo, mas vou destacar dois livros muitíssimo interessantes, porque
lançam alguma luz sobre a própria pandemia, ao tratarem do devastador
desequilíbrio ecológico e social que o mundo vem experimentando nos últimos
anos.
O Almanaque de um Condado Arenoso é um relato e uma reflexão baseados na
experiência do filósofo conservacionista americano Aldo Leopoldo, considerado um dos primeiros
ecologistas da humanidade. Nesse livro, o autor não apenas defende que
necessitamos adotar uma relação ética com a terra. Vai além e, ao mostrar as
mais diversas, intrincadas e sutis interconexões entre os seres vivos e nos
propõe algo maior: estabelecer uma relação de amor com a natureza e,
consequentemente, defender a continuidade da vida. Leopoldo questiona o
antropocentrismo, e destaca que “uma ética da terra muda o papel do Homo Spiens
de conquistador da comunidade da terra para um simples membro e cidadão dessa
comunidade” (P. 220).
Traduzido pelo prof. Rômulo Ribon, aqui da UFV e publicado
pela editora da UFMG, esse livro me fez repensar até a raiva que eu sentia pelas
cochonilhas, quando essas atacavam as minhas plantas. Pois é, até elas que vemos
somente como pragas, possuem um papel no equilíbrio ecológico de nosso
planetinha azul e consequentemente contribuem com a vida por aqui. Esse livro
publicado originalmente em 1949 e que teve a primeira tradução brasileira apenas
em 2019, impactou os paradigmas de conservação do meio ambiente e tornou-se
inspiração para leis ambientais e preservacionistas em várias partes do mundo.
Também mostrando os equívocos e consequências desastrosas da visão
antropocêntrica adotada pela humanidade nos últimos séculos, O Bem Viver, do
equatoriano Alberto Acosta, publicado pela Autonomia Literária e Editora
Elefante, aponta aspectos que contribuíram para que o mundo se tornasse esse
lugar tão perturbador: devastação ambiental, iniquidades sociais, crises
econômicas e outras mazelas que parecem não ter fim.
Nele, o autor imagina e
defende que há outros mundos possíveis; que é viável colocar um freio
nas ações desenvolvimentistas e em seus padrões de consumo irrefreáveis. Argumenta
veementemente que se pode barrar a ganância acumulatória infindável do sistema
capitalista. Propõe não somente parar com a sangria dos recursos naturais e a
devastação ambiental, em nome da geração de desenvolvimento, mas reforça a
conscientização de que somos apenas parte integrante da natureza, sem nenhuma
soberania sobre qualquer outro componente do planeta. Além disso, exalta o
conhecimento dos povos ancestrais e defende seu uso em paralelo com a ciência.
Encerra seu bem fundamentado discurso mostrando que o bem viver aceita e apoia
maneiras distintas de viver, valorizando a diversidade cultural, a
plurinacionalidade e não tolera a destruição da natureza, nem a exploração dos
seres humanos, nem a existência de grupos privilegiados à custa do trabalho e
sacrifício de outros. Enfim, dois livros indispensáveis.
boa reflexão, amiga querida. Ambas boas, se me permite opinar, porque nos fazem "aprender a lição que já sabíamos de cor"... bjs
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