sábado, 20 de abril de 2019

TEMPOS DE QUARESMA


Sabia-se que o tempo de mais medo havia chegado, quando depois da chuvarada de dezembro e janeiro, os matos ficavam muito densos e as  capoeiras, mais escuras,  manchavam-se com aquela cor triste das quaresmeiras em flor. Nas igrejas  e nas casas, os santos eram cobertos com panos roxos e, nesse período, até a banda tocava mais baixo e mais triste.

Contava-se que mulas sem cabeça e lobisomens andavam soltos depois da meia noite. E ninguém se espantava muito com relatos envolvendo outros entes esquisitos, como fantasmas, espectros e assombrações. Não era preciso dizer às crianças que era tempo da Quaresma. O florescer das árvores roxas além de pontuar de beleza a capoeira verde, indicava que era época de jejuns e abstinências.  
As noites pareciam mais escuras,  as  tempestades mais fortes, as casas maiores e os caminhos mais longos. As histórias eram muitas. Muitas mais do que as tantas do ano todo.
À noite vinham os homens com suas matracas para encomendar as almas. A ordem era para que as crianças não se levantassem da cama, muito menos chegar à janela. A avó já tinha avisado:
− Se não querem virar alma penada, tratem de ficar deitadas debaixo das cobertas, nada de faniquitos.
Mas era tempo de calor e a curiosidade maior que o medo. Então, contrariando as ordens, eu me levantava pé ante pé, para não acordar as primas e as irmãs que dividiam aquele quarto de infinitas possibilidades, onde em três camas cabiam sete meninas.  Quando o som começava a ficar bem próximo, eu ia à fresta da janela e constatava que, apesar dos ruídos fartos, os homens eram pouco mais de meia dúzia. Via almas penadas que voavam envoltas em lençóis brancos na noite escura feito breu. Pareciam brincar suspensas sobre a cruz alta do terreiro,  enfeitada de papel de seda.
Suspeitava que pudessem ter saído do quarador,  as roupas que dormiam na bica, para onde as tias as levavam em bacias sobre rodilhas de pano nas cabeças. A mina d´água ficava a poucos passos da casa, protegida por um maciço de bananeiras, logo depois do canavial que circundava parte da construção. Um  cano de bambu  jorrava água limpa e farta sobre o tendá de madeira; ao lado, o batedor, também de madeira e, à frente, o quarador de vedélias, onde se estendiam lençóis, fronhas e toda a roupa branca da casa, inclusive as anáguas das mulheres e as ceroulas dos homens.
Enquanto eu via o bailar descompassado das almas penadas, homens feito espectros enegrecidos pela noite escura, moviam-se ao som das matracas invisíveis, girando mais rápidas que a pedra do moinho  que rodava noite e dia.
Em casa, o silêncio denunciava que todos fingiam dormir. Até os gansos e os cachorros, que não poupavam estranhos que chegassem à noite e desandavam a grasnar e a latir, permaneciam mudos, como se estivessem hipnotizados pelo bailar dos lençóis e pela autoridade mágica dos homens que vinham encomendar as almas.
Depois que iam, ouvia-se o coaxar de sapos e também mugidos de bezerros presos no curral, enquanto as vacas dormiam no pasto para juntar o leite que seria retirado de manhãzinha.
Sobravam, no dia seguinte, um cheiro de alecrim queimado e rastros  de homens grandes na poeira do terreiro.
Quando o sol recém-nascido lançava seus raios sobre a roupa branca no quarador, confundindo os meus sonolentos olhos, eu não segurava a curiosidade e perguntava à minha mãe quem eram eles, os homens que vieram à noite. E ela, com o devido respeito à sogra,   dizia, disfarçadamente, que não se sabia quem encomendava as almas, que as matracas guiavam os escolhidos nas noites da Quaresma.

terça-feira, 16 de abril de 2019

BANDEIRA PARA UMA SANTA INEXISTENTE



Procuro desesperadamente
Por uma santa protetora
Dos cientes do desemparo,
Dos temperamentos esquisitos.
Árvore da Saudade
(Bordado inacabado)
Que dê consolo aos insones
E promova a paz dos ansiosos.
E equilíbrio aos desajeitados.

Que abençoe inconformados
E proteja os que pelejam
Com desrítmos e zumbidos,
Constipações e gastrites,
Dentre outras mazelas.
Que não cobre fé intransigente,
Nem exija crença incondicional,
Impossíveis aos fracos como sou.

Prometo fazer-lhe um bordado,
Com todo o amor e esmero
E a mais teimosa obstinação.
Será de todos os estandartes,
Provavelmente o mais sofrido,
Brotado da dor e da angústia.
Sem nomes e sem limites.

Seja feita com muita esperança
Toda a arte e muita crença
Essa bandeira redentora.


sábado, 30 de março de 2019

UM CONVITE E UMA PEÇA MUITO ESPECIAL


Há bastante tempo ensaio uma peça da padroeira da minha terra.
Mãe de nossa Senhora, portanto avó de Jesus, Sant´Ana é cultuada ostensivamente na minha família, que possui tantas desse nome, quer sejam, Donana, Sanita, Ana somente, ou  Ana Maria, Ana Luíza e outras Anas.
A santa  que é patrona das avós, dos professores e dos contadores de histórias, vem sendo representada, na maioria das vezes, com um livro nas mãos e a filha ao colo, ou aos seus pés.
Penso que Sant´Ana deve ter sido uma mulher à frente do seu tempo, pois nos a. C., devia ser bastante incomum que uma mãe ensinasse sua filha a ler.
Sabemos que até bem pouco tempo atrás, havia famílias que privilegiavam a educação dos filhos homens, alegando que as mulheres não precisavam estudar, porque isso as fariam independentes demais.
Não conheço imagem da mãe de Jesus vestindo cor de rosa. Suas representações, quase sempre, a mostram usando túnica e manto da cor do céu, ou na cor crua. Certamente influenciada pela mãe e, ao contrário do que disse certa ministra, Nossa Senhora nos conta que não é de hoje que meninas vestem azul.
Na peça que acabo de compor, especialmente para uma exposição que inauguraremos no dia 10 de abril próximo, na PUC-BH, utilizei uma foto da imagem clássica que adorna o altar principal da igreja matriz da minha terra.
Sant´Ana - Foto de
Luiz Henrique do Carmo
Adotei o cetim azul como pano de fundo e nele dispus, além da estampa, enfeites em crochê, pequenos retalhos bordados e flores, entre outros ornamentos. Assim pretendi homenagear minhas duas avós e minha querida e inesquecível irmã, que era paisagista, e tinha o nome da santa. Dispus também algumas letras e a frase, Era uma vez, lembrando e enaltecendo todos os educadores que atuam nesse nosso país tão displicente, (para não dizer coisa pior) com a educação.

sábado, 23 de março de 2019

A CARTA DE CAZUZA


Há mais de 30 anos, no dia 18 de abril de 1988, durante um show no Canecão, no Rio de Janeiro, Cazuza provocou a ira de muita gente com um gesto seu. O que não era algo muito incomum, já que ele foi um artista bastante polêmico até mesmo ao lidar com a própria doença.
Recentemente, em viagem ao estado do Rio, visitei, em Vassouras, o recém-inaugurado Museu do Cazuza. Instalado em um casarão antigo no centro da cidade, que é a terra natal da mãe do artista, o museu possui um acervo interessante, com peças de vestuário, instrumentos e farta documentação fotográfica da curta, porém profícua carreira do músico.
O que mais me impressionou, no entanto, durante a visita, foi reler a carta escrita por Cazuza, no já distante ano de 1988, e constatar a sua atualidade. Como aliás também continuam bastante atuais as letras de suas canções.
A carta
Eis a íntegra da carta:

"Está havendo uma polêmica, um escândalo, como diz o JB de terça-feira, 18 de outubro, com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música Brasil no meu show de domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da plateia.
O senhor Humberto Saad declarou que eu não entendo o que é a bandeira brasileira, que ela não simboliza o poder mas a nossa história. Tudo bem, eu cuspo nessa história triste e patética.
Os jovens americanos queimavam sua bandeira em protesto contra a guerra do Vietnã, queimavam a bandeira de um país onde todos têm as mesmas oportunidades, onde não há impunidade e um presidente é deposto pelo 'simples fato de ter escondido alguma coisa do povo.
Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnã é logo ali, na Amazônia, que as crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhos puxados? Que a África do Sul é aqui, nesse apartheid disfarçado em democracia, onde mais de cinquenta milhões de pessoas vivem à margem da Ordem e Progresso, analfabetos e famintos?
Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela no Rock'n'Rio junto com uma multidão que acreditava que esse país podia realmente mudar. A bandeira de um país é o símbolo da nacionalidade para um povo. Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto, estamos esperando".
Estátua de Cazuza. Ao fundo o terno branco de
um dos seus últimos xhows


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

MARIA DA SAUDADE É ESPAÇO DE RESISTÊNCIA



Quem costuma vir por aqui já sabe: esse é um espaço que não pratica qualquer tipo de atividade que sequer sugira comércio, negócio ou algo parecido. Somente por isso, já considero que esse é um lugar de resistência.
Aqui tecemos prosa sobre jardinagem, literatura, sobre arte, cultura, culinária; às vezes falamos de cinema e fazemos crônicas do dia a dia.
Por aqui também se fala de política.
Esse espaço não camufla sua posição alinhada fortemente à esquerda: defendo direitos trabalhistas, inclusão social, melhor distribuição de renda, estado laico e uma justiça imparcial e humanizada, entre outras bandeiras. Aqui somos nacionalistas, professamos a ideia de que o estado deve cuidar de serviços essenciais como saúde, educação, gestão das águas, segurança e previdência social. Da mesma forma, compartilha-se a ideia de que atividades estratégicas como a mineração, a comunicação, a proteção ao meio ambiente e até serviços bancários de alcance social, como o financiamento de moradia popular, da agricultura e de pequenos negócios, entre outros, devem estar, no mínimo, sob o controle majoritário do estado e sujeitos à sua permanente vigilância e regulamentação.
Consideramos que o que ocorreu com o Brasil, em 2016, foi sim um golpe, praticado contra um governo democraticamente eleito, golpe esse financiado à custa da compra de votos de deputados, a maior parte deles atolada até o pescoço em processos de corrupção  e que vêm sendo julgados com benevolência por uma justiça com fortes indícios de parcialidade.
Não podemos esquecer que esse governo se elegeu espalhando notícias falsas nas redes sociais e defendendo a legitimação da homofobia, da violência e do machismo.
Não conseguimos deixar passar despercebido o despreparo do presidente e fechar os olhos ao fato de que escolheu uma turma de ministros retrógrados e tão despreparados para o cargo quanto ele.
Portanto, estamos tristes e preocupados com o que vem pela frente. Dessa forma, não poderíamos deixar de resistir. E, nem que seja para nós mesmos, vamos continuar repetindo:
- mulheres não vão voltar para o tanque, negros não vão voltar para o tronco, gays não vão voltar pro armário;
- benefícios sociais e cotas são necessários enquanto não houver oportunidade de educação e trabalho para todos;
- lugar de criança é na escola e dizemos não à redução da menoridade penal;
- lutamos contra a terceirização de atividades  essenciais no serviço público e contra a precarização das condições trabalho e  da vida de todos.
Nos atrevemos a cultivar permanentemente a esperança e almejar a busca de generosidade  e justiça; somos resistência e não nos cansamos de  dizê-lo. E contamos com a arte para nos amainar as dores. Como, por exemplo, essa maravilhosa música que fez parte da trilha sonora do filme Ata-me, de Pedro Almodóvar e foi lindamente gravada por Adriana Calcanhotto.

Cuando pierda todas las partidas
Cuando duerma con la soledad
Cuando se me cierren las salidas
Y la noche no me deje en paz

Cuando sienta miedo del silencio
Cuando cueste mantenerse en pie
Cuando se rebelen los recuerdos
Y me pongan contra la pared
Resistiré, erguido frente a todo
Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte
Soy como el junco que se dobla
Pero siempre sigue en pie.

Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamás me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos
Resistiré, resistiré
Cuando el mundo pierda toda magia
Cuando mi enemigo sea yo
Cuando me apuñale la nostalgia
Y no reconozca ni mi voz
Cuando me aminace la locura
Cuando en mi moneda salga cruz
Cuando el diablo pase la factura
Se alguna vez me faltas tu
Resistiré
O si alguna vez me faltas tú
Resistiré...

Composição: Carlos Toro Montoro / Manuel Arcusa
  
Fonte da letra da música: https://www.letras.mus.br/duo-dinamico/139992/traducao.html