sábado, 23 de março de 2019

A CARTA DE CAZUZA


Há mais de 30 anos, no dia 18 de abril de 1988, durante um show no Canecão, no Rio de Janeiro, Cazuza provocou a ira de muita gente com um gesto seu. O que não era algo muito incomum, já que ele foi um artista bastante polêmico até mesmo ao lidar com a própria doença.
Recentemente, em viagem ao estado do Rio, visitei, em Vassouras, o recém-inaugurado Museu do Cazuza. Instalado em um casarão antigo no centro da cidade, que é a terra natal da mãe do artista, o museu possui um acervo interessante, com peças de vestuário, instrumentos e farta documentação fotográfica da curta, porém profícua carreira do músico.
O que mais me impressionou, no entanto, durante a visita, foi reler a carta escrita por Cazuza, no já distante ano de 1988, e constatar a sua atualidade. Como aliás também continuam bastante atuais as letras de suas canções.
A carta
Eis a íntegra da carta:

"Está havendo uma polêmica, um escândalo, como diz o JB de terça-feira, 18 de outubro, com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música Brasil no meu show de domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da plateia.
O senhor Humberto Saad declarou que eu não entendo o que é a bandeira brasileira, que ela não simboliza o poder mas a nossa história. Tudo bem, eu cuspo nessa história triste e patética.
Os jovens americanos queimavam sua bandeira em protesto contra a guerra do Vietnã, queimavam a bandeira de um país onde todos têm as mesmas oportunidades, onde não há impunidade e um presidente é deposto pelo 'simples fato de ter escondido alguma coisa do povo.
Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnã é logo ali, na Amazônia, que as crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhos puxados? Que a África do Sul é aqui, nesse apartheid disfarçado em democracia, onde mais de cinquenta milhões de pessoas vivem à margem da Ordem e Progresso, analfabetos e famintos?
Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela no Rock'n'Rio junto com uma multidão que acreditava que esse país podia realmente mudar. A bandeira de um país é o símbolo da nacionalidade para um povo. Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto, estamos esperando".
Estátua de Cazuza. Ao fundo o terno branco de
um dos seus últimos xhows


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

MARIA DA SAUDADE É ESPAÇO DE RESISTÊNCIA



Quem costuma vir por aqui já sabe: esse é um espaço que não pratica qualquer tipo de atividade que sequer sugira comércio, negócio ou algo parecido. Somente por isso, já considero que esse é um lugar de resistência.
Aqui tecemos prosa sobre jardinagem, literatura, sobre arte, cultura, culinária; às vezes falamos de cinema e fazemos crônicas do dia a dia.
Por aqui também se fala de política.
Esse espaço não camufla sua posição alinhada fortemente à esquerda: defendo direitos trabalhistas, inclusão social, melhor distribuição de renda, estado laico e uma justiça imparcial e humanizada, entre outras bandeiras. Aqui somos nacionalistas, professamos a ideia de que o estado deve cuidar de serviços essenciais como saúde, educação, gestão das águas, segurança e previdência social. Da mesma forma, compartilha-se a ideia de que atividades estratégicas como a mineração, a comunicação, a proteção ao meio ambiente e até serviços bancários de alcance social, como o financiamento de moradia popular, da agricultura e de pequenos negócios, entre outros, devem estar, no mínimo, sob o controle majoritário do estado e sujeitos à sua permanente vigilância e regulamentação.
Consideramos que o que ocorreu com o Brasil, em 2016, foi sim um golpe, praticado contra um governo democraticamente eleito, golpe esse financiado à custa da compra de votos de deputados, a maior parte deles atolada até o pescoço em processos de corrupção  e que vêm sendo julgados com benevolência por uma justiça com fortes indícios de parcialidade.
Não podemos esquecer que esse governo se elegeu espalhando notícias falsas nas redes sociais e defendendo a legitimação da homofobia, da violência e do machismo.
Não conseguimos deixar passar despercebido o despreparo do presidente e fechar os olhos ao fato de que escolheu uma turma de ministros retrógrados e tão despreparados para o cargo quanto ele.
Portanto, estamos tristes e preocupados com o que vem pela frente. Dessa forma, não poderíamos deixar de resistir. E, nem que seja para nós mesmos, vamos continuar repetindo:
- mulheres não vão voltar para o tanque, negros não vão voltar para o tronco, gays não vão voltar pro armário;
- benefícios sociais e cotas são necessários enquanto não houver oportunidade de educação e trabalho para todos;
- lugar de criança é na escola e dizemos não à redução da menoridade penal;
- lutamos contra a terceirização de atividades  essenciais no serviço público e contra a precarização das condições trabalho e  da vida de todos.
Nos atrevemos a cultivar permanentemente a esperança e almejar a busca de generosidade  e justiça; somos resistência e não nos cansamos de  dizê-lo. E contamos com a arte para nos amainar as dores. Como, por exemplo, essa maravilhosa música que fez parte da trilha sonora do filme Ata-me, de Pedro Almodóvar e foi lindamente gravada por Adriana Calcanhotto.

Cuando pierda todas las partidas
Cuando duerma con la soledad
Cuando se me cierren las salidas
Y la noche no me deje en paz

Cuando sienta miedo del silencio
Cuando cueste mantenerse en pie
Cuando se rebelen los recuerdos
Y me pongan contra la pared
Resistiré, erguido frente a todo
Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte
Soy como el junco que se dobla
Pero siempre sigue en pie.

Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamás me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos
Resistiré, resistiré
Cuando el mundo pierda toda magia
Cuando mi enemigo sea yo
Cuando me apuñale la nostalgia
Y no reconozca ni mi voz
Cuando me aminace la locura
Cuando en mi moneda salga cruz
Cuando el diablo pase la factura
Se alguna vez me faltas tu
Resistiré
O si alguna vez me faltas tú
Resistiré...

Composição: Carlos Toro Montoro / Manuel Arcusa
  
Fonte da letra da música: https://www.letras.mus.br/duo-dinamico/139992/traducao.html

domingo, 17 de fevereiro de 2019

CONVERSAS DE JARDINEIROS: Epífitas no jardim

Epífitas são plantas que vivem agarradas em galhos e troncos de  árvores ou arbustos. Não são parasitas, como a erva de passarinho e outras pragas que sugam a seiva das plantas, podendo até matá-las.  
Orquídeas reinam absolutas entre as epífitas
 Usando suas hospedeiras para fixação, as epífitas também se beneficiam da possibilidade de aproveitar os raios solares filtrados pela copa das árvores, o que costuma ser muito apreciado por várias espécies, principalmente orquídeas e bromélias. Estas gostam bastante de serem colocadas em troncos e galhos de árvores rugosas. Geralmente não se adaptam a espécies como goiabeiras e jabuticabeiras, por exemplos, porque periodicamente as cascas se soltam, dificultando a fixação das suas hóspedes.
Ripsális 
E chifres de veado, lindas e sempre verdes
Quem tem pouca disposição para cuidar de vasos, quase sempre  trabalhosos, e aprecia usufruir da beleza de boas floradas, desde que possua árvores ou arbustos disponíveis, conta com essa possibilidade, ainda pouco explorada por jardineiros e paisagistas.


Orquídea fixada em tronco de palmeira
O processo de fixar as plantas nas árvores é bastante simples, não exigindo grandes habilidades ou experiência. Com uma pequena corda, preferencialmente de fibra natural, como as de sisal ou corda de bananeira, uma muda saudável e um pouco de delicadeza, costuma-se acertar com facilidade.

Epifítas gostam de troncos rugosos
Orquídeas e bromélias podem ser fixadas diretamente nos galhos e troncos, podendo-se deixar suas raízes nuas; já samambaias, chifres de veado e ripsális preferem um pouco de esfagno, ou mesmo um pedaço de xaxim ou fibra de coco para proteger e conservar a umidade das raízes durante o processo de fixação. 
Bromélias e orquídeas juntas no mesmo tronco
Bromélias dão boas composições
em troncos e florescem anualmente 
É preferível que se utilizem de cordas e barbantes naturais  para amarrar as plantas, pois elas rapidamente se decompõem e integram-se às raízes e troncos.



segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

CRÔNICAS DO DIA A DIA - TODA HORA É HORA DE FALAR DE POLITICA


Nas redes sociais não são poucas as pessoas que estão dizendo, diante da tragédia ocorrida em Brumadinho, que não é o momento próprio para falar de política. Só com muita paciência e com uma enorme crença na força do diálogo, para não virar as costas e desistir dessa gente. O momento é trágico. A irresponsabilidade e a ganancia de uma empresa acabaram com centenas de vidas humanas e colocam em risco mananciais de água e outros biomas importantes para a preservação do planeta.  
Não há momento mais oportuno para reflexão, especialmente para aqueles que vivem defendendo o estado mínimo, sob o argumento, jamais comprovado, de que a gestão privada é mais efetiva do que a gestão pública. A mineradora responsável pelo crime de Brumadinho e também pelo de Mariana, já foi uma empresa estatal lucrativa e benéfica para o Brasil. Por ter como atividade principal a exploração de recursos minerais, questão estratégica para qualquer país que se preze, seria natural que continuasse sendo gerida pelo poder público, mesmo como uma instituição de economia mista, com participação da iniciativa privada; mas preservando-se o controle do capital e o poder de decisão nas mãos do estado.
Ao que se sabe, enquanto foi gerida pelo governo, a mineradora originalmente chamada Vale do Rio Doce, jamais provocou mortes e desastres ambientais comparáveis ao de Mariana e Brumadinho. Ou melhor dizendo, jamais praticou crimes dessa dimensão!
Assim sendo, este é sim o momento exato para falar de política. É ocasião mais que oportuna para refletir, por exemplo, sobre as propostas de flexibilização de leis ambientais!
Ainda mais necessário, é incluir nas discussões o tema das privatizações de áreas e setores fundamentais para a vida do povo, como saúde, previdência, educação e segurança.
Seria razoável entregar a gestão de nossa aposentadoria, por exemplo, a empresas que visam somente o lucro? Até que ponto o tão propalado déficit dos sistemas de previdência pública (incluindo-se o sistema geral, INSS, e os regimes próprios, tanto o federal quanto os estaduais e municipais), não são frutos de pressões e interesses de bancos que querem abocanhar esse filão de negócios, para engordar ainda mais seus já exorbitantes lucros?
Não poderíamos dizer o mesmo de empresas privadas e lucrativistas, almejando abocanhar cada vez maior quinhão da saúde, acabando com o SUS?
É preciso questionar também a quem importa que a educação e a segurança sejam entregues ao capital privado. Quem sai ganhando quando temos um país com tão baixos índices de desempenho na área da educação? Ou dito em outras palavras: a quem interessa que o povo seja cada vez mais ignorante e consequentemente mais fácil de ser explorado e manipulado?
Nesse momento tão triste em que nos sentimos impotentes e deprimidos, podemos por exemplo, pensar também sobre o papel de outras instituições, como as igrejas e organizações do terceiro setor. Muitas dessas, ao invés de engajarem-se em uma atuação política firme em favor dos pobres e do meio ambiente, preferem encabeçar campanhas assistencialistas que apenas amenizam e momentaneamente a dor e o desamparo das famílias alcançadas pela tragédia.
Mariana chora: Bordado sobre lenço 
Para além das perdas imediatas de tantas vidas humanas, há consequências difíceis de serem medidas com precisão, como o alcance dos danos provocados à saúde das pessoas que vivem no entorno dos locais onde as ocorrências se deram. O desastre de Mariana atingiu e prejudicou a vida e o equilíbrio ecológico de regiões distantes, estendendo suas funestas consequências às praias do Espírito Santo e provavelmente de outros estados. 
Agora o rompimento da barragem em Brumadinho já provoca danos de consequências ainda mais drásticas. Além da dolorosa perda de centenas de vidas, os rejeitos do rompimento da barragem já alcançam o rio Paraopebas  e a previsão é que, em cerca de quinze dias, chegarão ao Rio São Francisco, que corta diversos estados, além de Minas Gerais.
O Greenpeace uma das maiores organizações mundiais em defesa do meio ambiente afirma: "Este novo desastre com barragem de rejeitos de minérios, desta vez em Brumadinho (MG), é uma triste consequência da lição não aprendida pelo Estado brasileiro e pelas mineradoras com a tragédia da barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana (MG), também controlada pela Vale. Minérios são um recurso finito que devem ser explorados de forma estratégica e com regime de licenciamento e fiscalização rígidos. A reciclagem e reaproveitamento devem ser priorizados. Infelizmente, grupos econômicos com forte lobby entre os parlamentares insistem em querer afrouxar as regras do licenciamento ambiental, o que, temos alertado, significaria criar uma 'fábrica de Marianas'. Casos como esse, portanto, não são acidentes, mas crimes ambientais que devem ser investigados, punidos e reparados."
Por favor, vamos ter um mínimo de bom senso e descartar esse discurso de que não é momento para falar de política.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

MEU TRAVESSEIRO

Travesseiro do enxoval de minha mãe

Somente a ti confesso todo o medo
Diante dessa ausência de respostas
Onde qualquer vida, dura apenas um instante.
E cada fato, mesmo que transborde em plenitude,
Segue peregrino para a inevitável indiferença
Rumo às sombras no desfecho previsível.

Tento acreditar que possuo o silêncio da noite,
Poço fundo onde lanço inúteis murmúrios
Invocando céus, que se existem, não consolam.
Passo  horas esperando por improvável socorro
Ansiando por um amor que seja capaz de erguer
Meu corpo, a partir de olhares e cumplicidades.

Estou sozinho a errar mais uma vez.
Supondo poder mudar, estando atado
Nesse curto instante de ilusória existência.
A enganar-me preso no espaço incontrolável
Sem voz nem vontade. Imerso nos ruídos
Que zumbem frenéticos em meus ouvidos.