ANNIE ERNAUX - A Escrita como
Faca e Outros Textos
O livro tem início com a conferência proferida pela autora, por ocasião
da entrega do Nobel de Literatura a ela
outorgado no ano de 2022. Ao justificar a concessão do prêmio, a Academia sueca
exaltou a “coragem e acuidade clínica a qual ela revela as raízes, os
estranhamentos e as limitações da memória pessoal”.
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Reprodução Editora Fósforo (divulgação) |
Nascida em Lillebone, uma comunidade remota da França, no ano de 1940 e filha de uma família extremamente simples, Annie Ernaux estudou, trabalhou e vive em Paris. Desde o seu primeiro livro publicado aos 34 anos, Os armários vazios, a autora trata de acontecimentos pessoais e o faz com sinceridade singular.
Em uma de suas obras mais contundente, A escrita como faca, ela
esclarece sua pretensão de “Mergulhar no indizível de uma memória reprimida...”
e declara que se propõe a “... inscrever minha voz de
mulher e de trânsfuga social naquilo que sempre se apresenta como um lugar de
emancipação: a literatura” (P. 21).
Tendo, como a maioria dos escritores, a leitura como a base de seu
produção literária, ela descreve o ato de escrita como um imperativo de
sobrevivência, ao mesmo tempo em que provoca angústia e sofrimento ao autor. “A
leitura nos alimenta, pode nos salvar do processo tortuoso e torturante da
escrita e nos dar força para seguir em frente” (P.25).
O escritor, segundo Annie, é o “andarilho insensível dos latidos”. A autora está se referindo à independência e à
altivez necessárias ao escritor para dar continuidade à sua jornada, lembrando o
dito popular ‘Os cães ladram, e a caravana passa’.
O seu amor à literatura é expresso e exaltado; considera
essa última como um dos aspectos da realidade que a faz inserir-se na vida e no mundo, ao mesmo tempo em que afirma
não sentir necessidade de teorizar sobre isso. “Não defino a literatura, não
sei o que ela é” (P.42). “Sinto a
escrita como faca, é quase como a arma de que preciso” (P.47).
A escrita e a literatura aparecem para a autora com a esperança de se
libertar sozinha de seus problemas, da dor de viver e, ao mesmo tempo, ser
reconhecido pelos outros, o grande prêmio psico-simbólico (P. 64).
Annie Ernaux faz um entrelaçamento entre a sua vida e a escrita,
criando uma costura perfeita entre os dois aspectos. Como acontecimentos da
vida da escritora constituem temas para
seus livros, nota-se que viver e escrever para ela, são aspectos
indissociáveis. E, ao escrever sobre acontecimentos de sua vida, acaba tocando
em temas universais. “Escrever sua vida, viver sua escrita”. Para ela, escrever
é uma maneira de existir. E com sua escrita acredita “vingar sua raça”, ou
seja, atenuar dores e sofrimentos decorrentes de suas origens e condição
social. A coragem é a marca definitiva de Ernaux, pois não se furta de abordar
temas considerados tabus.
Em sua última parte, o livro traz a palestra feita pela autora em sua
pequenina cidade natal. Uma das passagens memoráveis, em minha opinião, é quando ela menciona: “....se vinguei a minha
raça como declarei que faria... isso é muito ambicioso. ... alguns dos meus
livros permitiram às pessoas tomar consciência de coisas que elas não ousavam
pensar, se sentir menos sozinhas, se sentir mais livres, talvez, e por isso
mais felizes” (P. 227).
Para quem gosta de ler e escrever, como é o meu caso, o livro é um ‘prato
cheio’, indiscutivelmente, uma das pérolas literárias dos últimos tempos, que
merece ser apreciado como se degusta uma iguaria nobre.
ERNAUX, Annie. A escrita como faca e outros textos. Trad. Mariana Delfini. São Paulo: Fósforo, 2023.