quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

RESENHA DE LIVRO

 

ANNIE ERNAUX -  A Escrita como Faca e Outros Textos

O livro tem início com a conferência proferida pela autora, por ocasião da entrega do  Nobel de Literatura a ela outorgado no ano de 2022. Ao justificar a concessão do prêmio, a Academia sueca exaltou a “coragem e acuidade clínica a qual ela revela as raízes, os estranhamentos e as limitações da memória pessoal”.

Reprodução Editora Fósforo (divulgação)

Nascida em Lillebone, uma comunidade remota da França, no ano de 1940 e filha de uma família extremamente simples, Annie Ernaux estudou, trabalhou e vive em Paris. Desde o seu primeiro livro publicado aos 34 anos, Os armários vazios, a autora trata de acontecimentos pessoais e o faz com sinceridade singular.

Em uma de suas obras mais contundente, A escrita como faca, ela esclarece sua pretensão de “Mergulhar no indizível de uma memória reprimida...” e  declara que  se propõe a “... inscrever minha voz de mulher e de trânsfuga social naquilo que sempre se apresenta como um lugar de emancipação: a literatura” (P. 21).

Tendo, como a maioria dos escritores, a leitura como a base de seu produção literária, ela descreve o ato de escrita como um imperativo de sobrevivência, ao mesmo tempo em que provoca angústia e sofrimento ao autor. “A leitura nos alimenta, pode nos salvar do processo tortuoso e torturante da escrita e nos dar força para seguir em frente” (P.25). 

O escritor, segundo Annie, é o “andarilho insensível dos latidos”.  A autora está se referindo à independência e à altivez necessárias ao escritor para dar continuidade à sua jornada, lembrando o dito popular ‘Os cães ladram, e a caravana passa’.

 O seu amor à  literatura é expresso e exaltado; considera essa última como um dos aspectos da realidade que a faz inserir-se na  vida e no mundo, ao mesmo tempo em que afirma não sentir necessidade de teorizar sobre isso. “Não defino a literatura, não sei o que ela é” (P.42).  “Sinto a escrita como faca, é quase como a arma de que preciso” (P.47).

A escrita e a literatura aparecem para a autora com a esperança de se libertar sozinha de seus problemas, da dor de viver e, ao mesmo tempo, ser reconhecido pelos outros, o grande prêmio psico-simbólico (P. 64).

Annie Ernaux faz um entrelaçamento entre a sua vida e a escrita, criando uma costura perfeita entre os dois aspectos. Como acontecimentos da vida da escritora  constituem temas para seus livros, nota-se que viver e escrever para ela, são aspectos indissociáveis. E, ao escrever sobre acontecimentos de sua vida, acaba tocando em temas universais. “Escrever sua vida, viver sua escrita”. Para ela, escrever é uma maneira de existir. E com sua escrita acredita “vingar sua raça”, ou seja, atenuar dores e sofrimentos decorrentes de suas origens e condição social. A coragem é a marca definitiva de Ernaux, pois não se furta de abordar temas considerados tabus.

Em sua última parte, o livro traz a palestra feita pela autora em sua pequenina cidade natal. Uma das passagens memoráveis, em minha opinião, é  quando ela menciona: “....se vinguei a minha raça como declarei que faria... isso é muito ambicioso. ... alguns dos meus livros permitiram às pessoas tomar consciência de coisas que elas não ousavam pensar, se sentir menos sozinhas, se sentir mais livres, talvez, e por isso mais felizes” (P. 227).

Para quem gosta de ler e escrever, como é o meu caso, o livro é um ‘prato cheio’, indiscutivelmente, uma das pérolas literárias dos últimos tempos, que merece ser apreciado como se degusta uma iguaria nobre.

ERNAUX, Annie. A escrita como faca e outros textos. Trad. Mariana Delfini. São Paulo: Fósforo, 2023.