quinta-feira, 31 de outubro de 2024

VIAGEM A ARACAJU E ARREDORES

 


“Ninguém ouviu um soluçar de dor

No canto do Brasil.

Um lamento triste sempre ecoou

Desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro

E de lá cantou

Negro entoou, um canto de revolta pelos ares

Do Quilombo dos Palmares...” (Canto das três raças de Paulo Sérgio Pinheiro, com música de Mauro Duarte e interpretação mais conhecida na voz de Clara Nunes).

         Há algum tempo, passei por Sergipe, a caminho de Recife (PE). Ficou a vontade de voltar para conhecer melhor o estado, convicta de que o Nordeste brasileiro sempre vale bons passeios, com muita praia bonita, gente hospitaleira e cultura rica. Agora, finalmente fui para ficar um período de sete dias.

Lagoa linda e limpa em frente à praia do Atalaia

A  palavra Sergipe, tem origem na língua tupi e significa rio dos siris.  O nome passou por variantes Cirizipe e Cerigipe que significa ferrão de siri, numa referência ao cacique Serigy, um dos valentes guerreiros que lutaram contra o domínio ibérico.

Estátua em frente ao Museu da Gente Segipana


Embora a herança indígena esteja por todo o estado, os habitantes originários foram praticamente dizimados. Seu povo vivia entre os atuais rios Vaza-barris e Sergipe, onde está Aracaju. Depois de três décadas de luta, em 1590, foram vencidos pelos invasores que fundaram a capitania de Sergipe del Rey. 

No entanto, a herança indígena continua forte em todo o estado. A capital guarda em seu nome o significado de origem tupi-guarini, (Ará, papagaio e  Acaiú, fruto do cajueiro), que resultou em Aracaju, ou cajueiro dos papagaios.

São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do Brasil, foi a primeira capital do estado. Construída em estilo espanhol, hoje tombada como patrimônio nacional e pela UNESCO, a cidade e seu  centro possuem grande valor histórico e cultural e as construções do período colonial encontram-se em bom estado de preservação. Ai encontramos artistas de renome como o xilogravurista Arnaldo Oliveira, que nos recebeu carinhosamente em seu ateliê. Da mesma forma fomos tratadas na Casa dos Saberes e dos Fazeres pelas suas simpáticas bordadeiras e pelo Sr Jorge dos Estandartes que aos 88 anos é ícone da cultura popular, e compõe mantos e outras lindas peças artísticas.

Praça de São Francisco em São Critóvão


Arte têxtil elabora por Sr Jorge dos Estandartes

Os locais por onde andamos valem muito a pena de serem apreciados. A cidade de Aracaju encontra-se limpa e bem cuidada. Foi planejada e possui um plano diretor que estabelece limites à especulação imobiliária. Os rios não são poluídos e possuem matas ciliares preservadas. Há praias de mar e de rios espalhadas por diversas áreas. A proximidade com o estado da Bahia permite visitas à praia do Saco e Mangue Seco. Próximas ao local onde nos hospedamos, Atalaia, Aruana e Mosqueiros são ótimas opções.

É compensador também pegar a lancha na orla do pôr do sol e fazer um passeio à Croa do Goré, um banco de areia no encontro do rio com o mar, que propicia horas de banho de águas mornas e limpas, vista linda dos mangues que beiram o rio. Quando tais encantos são apreciados juntamente com a caipirinha de frutas e os variados tira-gostos disponibilizados nos barcos bar, ou na única barraca do local, ficam inigualáveis. O barco bar e a barraca permanecem ancorados até  próximo ao final da tarde, quando a maré sobe implacavelmente expulsando a gente daquele paraíso.

Da mesma forma, andar um pouco mais por estrada, pegar o barco na praia do saco e depois o buggy pelo caminho de areia para alcançar as praias de Mangue Seco, no estado da Bahia, é um passeio relativamente fácil para quem está hospedado em Aracaju. Incluir uma parada na ilha da Sogra, na volta, incrementa ainda mais um dia cheio de aventuras e pleno de paisagens deslumbrantes.

Mangue Seco (BA) e seus coqueirais

Saco de Bode: essa
linda planta dá nome
à praia do Saco

Tanto o museu da Gente Sergipana, quanto o Memorial de Sergipe Prof Jouberto Uchoa, são bons espaços para imersão histórica e cultural do Estado. Especialmente o primeiro, com o acervo de réplicas das obras de Arthur Bispo do Rosário, juntamente com as estátuas gigantes de figuras do folclore de Sergipano na parte externa, me encantaram de maneira singular.

Para sintetizar, a viagem ao Sergipe e ao pedacinho da Bahia nos permitiu observar que é uma região plena de atrações turísticas, tem um povo muito hospitaleiro e uma cultura muito rica. Entretanto, percebe-se que a distribuição de renda é injusta como em todo o Brasil e que o povo “canta de dor”, sem perder de vista sua memória, e sua valiosa ancestralidade.

Voltamos revigoradas por apreciar mais um pouco da cultura e das imensas belezas desse nosso país, sem deixar de sentir, no entanto, repercutindo nos ouvidos, o eco dos clamores de seu povo.

Cacique Serigy vive! E sua luta nos encoraja.

Bispo do Rosário vive! E sua arte nos inspira.


Com as bordadeiras da Casa dos 
Saberes e dos Fazeres em São Cristovão

Com o mestre Nivaldo e companheiras de
viagem em São Cristóvão

segunda-feira, 27 de maio de 2024

A TRILHA


Dirigia o automóvel na via esburacada, com curvas e morros. Pedras mal encaixadas, musgos de aspecto úmido e escorregadio.  De um lado, a elevada montanha, do outro, o precipício escuro e sombrio.

Em contraste à rudeza do cenário, ela se vestia a rigor como para um baile antigo. Maquiada e de salto alto, a roupa escura e apertada, com dourados detalhes: bela e desconfortável.

Depois, ela montava um cavalo musculoso, de pelos escovados e crina aparada, e seguiam por uma trilha. Montanhas e precipícios mais próximos. O percurso exigia esforço de ambos.  Botas desconfortáveis torturavam os femininos pés, enquanto ela se indagava como iria a um baile de gala assim vestida. A hora se aproximava impiedosa, o tempo ia se escapando à velocidade da luz.

Aves de rapina cortavam os ares. Com medo, ela se persigna e encara afinal o acontecimento. Músicos exaustos, copos vazios e cinzeiros cheios. Flores murchas pendiam dos vasos. Na pista lateral, jovens dançavam um funk obsceno.

Nos portões de acesso surgem bandos de crianças que vão ocupando o espaço; aulas e brincadeiras começam e pessoas são expulsas por vigias truculentos. Não cabem reclamações ou protestos: tudo estava previsto no estatuto.

Estrada e trilha, automóvel, animal, nada mais havia. Agora avisam que ali não toleram anarquistas

domingo, 28 de abril de 2024

CRÕNICAS DO DIA A DIA

 

MEU AMIGO VALDO

 A campainha toca e eu chego à janela.

- Dá dois real ai vó.

Me senti a maior das ultrajadas. Era um homem preto, apavorado, descalço e sem camisa. Disfarçando pecados mais graves e preconceitos enraizados, retruquei em nome da vaidade:

- Não tenho idade para ser sua avó não, moço. Quantos anos você tem?

- Ah então tá titia dá dois real  meu nome é Valdo e tenho 37.

A nota que entreguei ao sujeito magro e sarado estava amassada e sem cor como quase todas de pequeno valor, que por aí ainda circulam, como símbolo de resistência nesses tempos de valores virtuais.

Fiz um amigo. Ou melhor, ganhei um parente, daqueles que ainda visitam a família com regularidade. Quase todos os dias ele passa quando o sol está a pino. Costuma voltar ao final da tarde e pode aparecer até à noite.

Já me contou que seu nome completo é Riovaldo dos Santos Silva e percebo que o quase xará do filósofo sertanejo é mais agitado do que eu. Mesmo raramente,  costuma aparecer fora de horas. Nessas ocasiões  vem ainda mais falante e gesticula com intensidade cabeça e braços. A respiração ofegante. Pudera. Além de andar muito, sobe o morro que dá acesso ao bairro, quase sempre às pressas. Parece acompanhar com os passos o ritmo da fala e expressa seu taquipsiquismo claramente, quando dá notícias de todos os infortúnios da cidade. Por volta do meio dia atendo a campainha.

- É eu titia.  Mataram um agora lá no Rebenta, me dá cinquinho preu almoçar.

- Credo, Valdo, para de espalhar notícia ruim. Hoje não tem cinco, mas você tá quase com sorte, vão aí duas de dois. E entrego as notas amassadas.

Mesmo que abomine as páginas dos crimes dos jornais, ando atualizada de todas ocorrências violentas. E fico sabendo, segundo Valdo noticiário, que naquela semana foram pelo menos mais dois crimes chocantes.

- Um sujeito da APAC foi degolado agora  pouco, titia. Até os polícia  anda com medo. E uma moto passou por cima de um senhor que tava na faixa em frente ao supermercado. Mesmo atravessando certo, o pobre morreu na hora. Dá dois real aí titia.

Quando informo que hoje tô sem dinheiro algum, ele pede uma água. Ainda bem que ultimamente parece mais calado. Entretanto não deixou de dizer que o pai dele queria bater na sobrinha por causa de um pedaço de carne. E arrematou: - tem muita violência pro todo lado, titia.

Ando sorumbática, sem disposição para tanta notícia ruim. No entanto, sinto falta quando ele desaparece por vários dias.

- Você sumiu, Valdo. Comento quando ele ressurge tocando a campainha.

- Tudo bão, titia? Me arruma um dez, ainda num almocei. E já saindo às pressas com o cinquinho que lhe entrego, avisa de longe: sumi porque arrumei uma namorada lá em Araponga.

sábado, 30 de março de 2024

SOBRE PLANTAS E INTELIGÊNCIA

 

        A reforma do pensamento requer um questionamento radical que desanima as pessoas(Edgar Morin, em Meus Demônios. Bertrand Brasil, 2000, p. 185).


Resenha do livro: Revolução das Plantas Stefano Mancuso. São Paulo: Ubu Editora, 2019.


 A não ser pelo fato de que ambos são seres vivos, animais e plantas diferem-se de tal maneira que pode-se  chegar a crer que além dessa característica, nada mais possuam em comum. Enquanto animais, no geral locomovem-se e precisam buscar sua comida  para sobreviver, as plantas  fabricam seu próprio alimento e são entes de estruturas fixas. Além dessas destacadas diferenças, a incapacidade de aprender, dada a ausência de memória no mundo vegetal, vinha sendo considerada particularidade determinante a distinguir entre os dois entes.

O livro Revolução das plantas do biólogo e pesquisador italiano Stefano Mancuso, publicado no Brasil pela Editora Ubu,  apresenta um novo olhar sobre o reino vegetal, com conceitos e ideias muito surpreendentes para a maioria das pessoas.

O livro recebeu o prêmio Galileo de
divulgação científica no ano de 2018

O autor informa que o comportamento de plantas vem sendo estudados pela ciência desde pelo menos o século XVIII,  e que afinidades entre os reinos animal e vegetal no que concerne à capacidade de cognição e aprendizagem das plantas vem sendo descobertas desde então.

Perguntando se é possível existir memória sem  cérebro, esse livro nega o conceito de passividade das plantas, ao afirmar que elas são formas de vida  bastante sofisticadas. Por apresentarem comportamentos interessantes, ainda que não possuam cérebro, encontram formas particulares de criarem e reterem memórias, sendo capazes de assumir novos comportamentos.  

Também as plantas podem praticar o mimetismo a seu favor, fortalecendo a capacidade de sobreviver e surpreendendo-nos com o quanto têm a ensinar. A busca pela sobrevivência e pela evolução ao longo dos anos dotaram as plantas de sabedorias milenares que, ao serem descobertas tem surpreendido cientistas em todo o mundo. Comportamentos tão aprimorados das plantas podem e vem sendo utilizados para inspirar soluções para problemas humanos de alta complexidade. Mais recentemente suas estruturas e propriedades têm sido utilizadas até para a construção de protótipos  de sondas de exploração espacial. Os chamados robôs plantóides já estão sendo utilizados experimentalmente por laboratórios da NASA, com perspectivas de uso na busca de conhecimentos sobre outros planetas.

A maneira como as plantas coexistem na natureza e convivem com as diferenças, colaborando entre si no processo evolutivo, desenvolve uma espécie de inteligência coletiva,  que favorece a sobrevivência e  inspira estudos sobre  novos sistemas de governança cooperativa baseada na  descentralização como em uma árvore, por exemplo, e não com funções e atribuições dispostas em hierarquias. O autor enaltece tais características expressando o conceito de democracia verde, apontando como  modelo de gestão do futuro.

As palavras chaves da ficha catalográfica do livro são: Ecologia, Biologia, Ciências Sociais e Robótica; a obra contem relatos de diversas experiências científicas, discorre sobre propriedades e funções de órgão das plantas e de mecanismos que envolvem complexos emaranhados de reações físicas e químicas que ocorrem no seu interior. Ainda assim, a  leitura é acessível aos leigos, sendo, ao contrário do que se possa pensar ao início, muito didática e interessante. Em algumas partes, como no último capítulo, por exemplo, a escrita  chega a ser até muito bem humorada.

 

 


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

C O N V E R S A D E J A R D I N E I R O S - Jardim Funcional

 

Virou moda falar de jardins funcionais. Revistas de casa, decoração e paisagismo, assim como as mostras anuais de profissionais e produtores das áreas têm intensificado a utilização desse termo. Creio, no entanto, que, desde os mais remotos tempos, jardins têm sido espaços que cumprem múltiplas e variadas funções, indo muito além de suas propriedades puramente decorativas. Há os casos daqueles que instalam jardins em residências e outros espaços públicos ou privados com o objetivo apenas de valorização do imóvel ou do serviço ali prestado. Da mesma forma, existem  os que desejam um jardim como espaço de meditação e busca de harmonia interior, bem como outros que apreciam beija flores e outros pássaros e requerem dos profissionais  do paisagismo a inclusão de espécies florais que sejam mais atraentes para esses bichinhos.


Limoeiro também usado como
suporte de orquídeas


Composição interessante de jabuticabeira
e bromélias enfeita a área da piscina
Foto: Dayze Magalhães

Há registros que indicam que por volta dos anos 300 a. C., o filósofo grego Epicuro exaltava o bem viver e a felicidade que podem surgir da convivência com os jardins. Ele referia-se ao Jardim das Delícias e dos prazeres e criou uma escola de pensamento, o Epicurismo, que divulgava suas ideias, compartilhadas por muitos discípulos.

Parece claro que os jardins, enquanto espaços planejados, podem e devem ser vistos não apenas como espaços com funções estéticas e decorativas. A depender do desejo e das possibilidades dos seus usuários, o paisagismo  pode atender a diversas funções, sendo as mais mencionadas:

- para a valorização e embelezamento de imóveis;

            - como espaço de meditação e busca de paz interior;

            - com  função estética, ou seja  priorizando-se a promoção da beleza e harmonia do local;

            - com o objetivo de preservação e cuidados com a fauna e a flora, atrair pássaros, borboletas e outros pequenos animais;

            - e, como mencionado, os ditos  Jardins funcionais, quando às espécies ornamentais, associam-se plantas que possuem outras características.

         Juntamente com espécies frutíferas, ervas aromáticas, chás e temperos, bem como verduras e legumes, as plantas ornamentais podem e devem ser harmonizadas de forma que o jardim se torne um espaço multifuncional sem perder de vista a experiência estética.          

Esse último movimento, o de incluir espécies utilitárias nos jardins, tem sido impulsionado pelo desejo, cada vez mais frequente, de melhorar a oportunidade de consumir alimentos mais saudáveis, livres de agrotóxicos e excesso de fertilizantes.

        Frutíferas de porte menor e  de fácil produção em climas tropicais e temperados tem sido vistas com mais frequências em belos jardins. Apenas como exemplos de arbustos, citam-se  romãs, acerolas, carambolas e jabuticabas, entre outras tantas que, a depender do arranjo e  da  distribuição nos canteiros, cumprem o papel de utilitárias e decorativas com o mesmo vigor. Maracujá, uva e kiwi, entre outras, trepadeiras ficam muito bonitas cobrindo pergolados ou mesmo como coberturas para cercas e muros.

Carambola: um luxo no jardim
Acerola enfeita, alimenta e 
pode proteger espécies de sombra




Pérgola coberta por parreira de uva confere proteção
a kokedamas de plantas pequenas e orquídeas
Foto: Solange do Carmo

Entre as espécies menores, são bonitos os tomateiros, várias tipos de pimentas e pimentões da mesma forma que as berinjelas (por seus lindos frutos) e as beterrabas (por sua folhagem exuberante). Essas e outras plantas de hortas podem cumprir o papel ornamental adicionando cores e texturas inesperadas em jardins e canteiros. Também a cúrcuma (ou açafrão da terra) assim como o gengibre, além de muito saudáveis para serem incluídos nas dietas alimentares, produzem flores interessantes e compõem bem com alpíneas, helicônias e especialmente com a cúrcuma ornamental, uma variedade que tem estado na moda entre paisagistas e decoradores. Morangos, por sua vez, além de poderem compor canteiros,  costumam ser usados lindamente como forração em vasos maiores.

Cidreira ou capim limão em
harmonia com bromélias

Das espécies consideradas aromáticas, ou folhas de chá, também surgem combinações interessantes em jardins multifuncionais. A camomila e a artemísia, por exemplo, com pequenas flores brancas e amarelas enfeitam e alegram  canteiros; da mesma forma, a alfavaca e o manjericão, ambos com folhagens exuberantes quando bem cuidadas, além de enfeitar perfumam espaços onde são inseridos e podem atrair insetos importantes como abelhas e joaninhas.

Cultivar, mesmo que pequena parte de sua própria comida, não se resume a ter uma vida mais saudável, mas também em contribuir para a preservação do meio ambiente. Quando essa prática puder ser associada com o gosto que a maioria das pessoas possuem por jardins, certamente tornará as atividades de cuidado e manutenção necessárias muito mais prazerosas. Enfim,  jardim, pomar e horta não são áreas excludentes, ao contrário, casam-se muito bem, observados os princípios que conferem harmonia e beleza aos espaços, transformando-os em verdadeiros “jardins de delícias e prazeres”, como se referia o antigo filósofo.

Lindo vaso de pimenta do reino